Água Rasa 2
- Riesa Editora
- 13 de jan.
- 20 min de leitura
Atualizado: 4 de jun.

Ella
Aqueles primeiros minutos foram extremamente CAÓTICOS.
Sim, existia um procedimento a ser seguido para pacientes que acordam depois de tantos anos de um coma, e um procedimento específico para o caso de Ella Schafer acordar. Mas, muito claramente, ninguém esperava por isso, o que causou uma correria generalizada pelo hospital. Ela acordou muito agitada, tentou se levantar sozinha. Existia um sensor de movimento que disparava a câmera de segurança, mas esta demorou para ser verificada. Era madrugada, e não se sabia ainda por quanto tempo Ella estava acordada, apenas que estava, e que só se acalmou depois que sua esposa chegou.
— Precisamos examiná-la, senhora!
— Eu sei, mas ela está assustada. Se a gente não sabe muito bem o que está acontecendo, imagina quem acabou de acordar! Por que ela está sangrando?
— A senhora Schafer estava no chão quando a encontramos. Acordou e provavelmente tentou se levantar sozinha. Acabou caindo e abriu o supercílio. Precisamos fechar, mas...
— Só um minuto, OK? Só um minuto — Estava o tempo todo com as mãos em cima da sua esposa, se colocando entre Ella e a equipe, quando a percebeu altamente agitada. Olhou naqueles olhos de oceano mais uma vez e acabou sorrindo. Era impossível não sorrir! Sua mulher estava acordada, irritada, mas acordada — Linda, está tudo bem, mas a equipe precisa te examinar.
A voz havia desaparecido. Mas aqueles olhos estavam mais do que expressivos: molhados, intensos, o corpo tremendo inteiro, suada por completo. Piscou mais forte. Tinha sangue escorrendo para dentro do olho esquerdo dela e, aparentemente, Ella não estava mais conseguindo se mover. Carter limpou delicadamente o sangue que escorria por aqueles cílios longos, lindos. Daí, tocou o rosto dela com muito carinho.
— Está sentindo dor? — Carter perguntou e ela afirmou, trêmula, lagrimando — No corpo inteiro? — Sim, era no corpo inteiro — A equipe vai examinar você. Estou bem aqui. Você está em segurança, OK? — Beijou a testa dela longamente, respirando muito fundo, com um alívio que estava ausente da sua mente havia quase cinco anos — Não tenta falar, não tenta se mover. Você está frágil, mas vamos cuidar de você.
Ela afirmou. Tudo bem, podia ser assim. E Carter não saiu da visão dela em nenhum momento. Ficaram se olhando o tempo todo, e Carter estava sorrindo sem parar, sorrindo e chorando. Mas eram lágrimas de felicidade, claramente de felicidade. E quando sua esposa conseguiu sorrir... Foi a coisa mais linda possível. Ela conseguiu, no meio de toda a dor que estava sentindo, enquanto era examinada, enquanto sustentava o olhar no seu. Abriu aquele sorriso lindo, e Carter nem sabia. Porém, ela estava cansada, sentindo muita dor e, quando Carter deu por si, sua garota estava dormindo novamente.
Se colocou de pé imediatamente:
— Ela...?
— Está dormindo, mas só naturalmente dormindo — O médico informou, também sorrindo, sem conseguir evitar — Isso é muito, mas muito incomum, Carter. Precisamos informar a comunidade médica. Provavelmente precisaremos de outros especialistas, vamos ter que contar com mais pessoas. Vamos levá-la para mais alguns exames. Colocamos um ponto falso no machucado. Ela caiu muito forte no chão, mas reconheceu você, e isso é ótimo. Não fazemos ideia da profundidade real da situação. Ali, a família chegou. Vamos falar com elas.
Nia e Grace Schafer haviam acabado de chegar. Nervosas, chorosas, ansiosas, e ficaram mais ansiosas ainda por Ella estar dormindo de novo.
— Mas está dormindo como uma pessoa normal, não mais como a Bela Adormecida que ela se tornou nos últimos anos — Carter explicou, depois que abraçou ambas longamente, as fazendo rir — Ela acordou, Nia! Me reconheceu, falou comigo.
Nia lagrimou e abraçou Carter novamente, muito forte.
— Ah, Carter, a minha menina acordou, eu ainda não acredito que — olhou para Carter, para Grace — isso está mesmo acontecendo!
— Nada de um por cento de bateria. Ela deve ter ouvido isso e ficado chateada! — A irmã não conseguia parar de sorrir também.
— Vai ver, era o contrário, faltava um por cento de carga para ela acordar e agora... — Carter olhou para Ella através do vidro, e as duas se enfiaram nos seus braços outra vez.
— Obrigada por continuar cuidando dela, por não ter desistido — Nia disse, com os olhos grudados na filha — A gente não teria mais como estar aqui se você não tivesse ficado, Carter.
Sabia que Nia estava falando sobre questões financeiras. Mas Carter teria gastado o triplo se fosse para manter viva a possibilidade de sua esposa acordar.
— A gente não tinha outro lugar para ir. Era aqui que a Ella estava.
Essa sempre havia sido a sua resposta mais automática. Para onde podia ir se Ella estava naquele hospital? Como podia só... ir em frente? Não conseguia ir em frente, não conseguia ver um futuro quando sua esposa ainda estava parada no mesmo lugar. Por três anos, foi o que havia respondido. Então, Raina aconteceu.
Raina.
Ficaram no quarto por um tempo. Ella despertou pouco antes do amanhecer e estava claramente confusa. Reconheceu a mãe, mas não a irmã. E as duas estavam muito nervosas, chorando bastante, e a terapeuta decidiu intervir. Não podiam sobrecarregá-la. Então, Ella foi levada para fazer alguns exames, Nia e Grace foram até a cafeteria, e Carter se sentou do lado de fora do quarto, respirando muito fundo, tentando... organizar a sua mente inteira. Estava com milhares de mensagens no celular, o dia estava amanhecendo do lado de fora, e sua mente estava... eufórica, caótica, pensando mil coisas ao mesmo tempo, mas que, ao final, convergiam para uma única coisa: afluíam para Ella. E apenas para ela. De repente, alguém lhe ofereceu um copo com seu café preferido.
Era Raina, claro que era ela.
— Aqui, você precisa comer alguma coisa. Vamos.
— Obrigada — Pegou o copo e provou — Eu te deixei aqui sozinha, não é? Desculpa — Carter havia visto Raina de relance durante aquelas primeiras horas, porém ela havia desaparecido logo em seguida.
— Não é um problema. Uma coisa incrível acabou de acontecer — Ela respondeu, sorrindo — O que acontece agora? Já disseram alguma coisa?
— Tem um procedimento a ser seguido, vários testes, muitos exames. Ela está sentindo muita dor.
— Ela... reconheceu você?
— Sim — Os olhos brilharam — Mas ficou confusa com a Grace — Isso estava preocupando um pouco.
— Hum... Grace tinha treze anos quando tudo aconteceu. Ela deve ter mudado muito, não?
Carter parou, pensando sobre aquilo.
— Ela realmente mudou bastante. Você sabe que, nessa idade, a Grace gostava de se vestir mais como um garoto, usava o cabelo supercurto, era bem diferente mesmo.
— Pois pode ser isso. Ella não faz ideia de quanto tempo dormiu. Ouvi a terapeuta explicando que a introdução de informações deve ser feita de maneira gradual. Ninguém sabe muito bem como o cérebro dela realmente está; ainda será descoberto. Ela te deu bom dia, não deu?
Carter riu. Ela havia dado mesmo. Depois que a estabilizaram e ela se acalmou um pouco, Ella Schafer olhou para Carter e lhe deu bom dia, casualmente, com a voz quase sem sair, mas deu.
— Como se tivesse dormido ontem, é verdade.
Raina passou o braço por Carter, puxando-a para perto, carinhosamente.
— E como você está?
— Eu? — Respirou fundo, tomando outro gole do seu café, recostando a cabeça no ombro dela. Estar com Raina era sempre reconfortante — Acho que... confusa. Ansiosa — Esboçou um sorriso tenso — Como... como você está?
Daí, foi ela quem respirou fundo.
— Acho que tranquila. Essa era uma possibilidade desde o nosso começo. Você é casada, e a Ella podia acordar. Não tem roteiro daqui pra frente. Não existem muitos relatos de quem volta de um coma tão longo e acorda dando bom dia. Vamos só... esperar e ver como as coisas irão acontecer. Você vai precisar ficar aqui mais um pouco, não é?
— Sim, há questões que quero acompanhar, entender. Você pode ir às reuniões de orçamento, me representar?
— Claro que sim. E te busco para almoçar, tudo bem?
— Tudo bem.
Trocaram um beijo e Raina foi pra casa, tentar dormir por mais uma hora. Carter estava muito ansiosa ainda, muito nervosa, toda incerta de cada coisa. Alguns minutos depois, Ella foi trazida de volta. O quarto tinha sido reorganizado depois da bagunça causada pelo seu despertar, e ela seguia acordada, mas perceptivelmente confusa.
— Acho que ela vai dormir um pouco mais, Carter — O médico informou.
— Mas tem problema se eu ficar aqui com ela?
— Não, acho extremamente positivo. Ela precisa da família perto, de estímulos positivos. Vamos aguardar pelos exames mais detalhados, mas, aparentemente, de maneira quase milagrosa, não há lesão cerebral grave. Ao menos, nada que tenha aparecido nessa primeira ressonância.
Carter soltou o ar, aliviada.
— Ainda bem!
— Tudo isso é muito incomum, muito mesmo, você não faz ideia do quanto! Bem, ela consegue falar, mas vai precisar de fonoaudiologia. Está com dificuldades físicas, mas tudo isso é absolutamente normal. Anormal é ela ter acordado — Ele seguia sorrindo — Você sempre disse que ela ia acordar.
— Eu não conheço ninguém mais determinada do que Ella Schafer — Deixou uma lágrima cair — Eu posso...?
— Ficar com ela um pouco, claro que sim.
Respirou muito fundo e entrou no quarto novamente. Sua garota já estava sem máscara, respirando melhor, parecia mais calma. E ainda não parecia real. Carter puxou uma cadeira e sentou-se pertinho dela. Ella se esforçou para falar:
— Nós... perdemos...? — A voz dela seguia muito baixa. Falar claramente era um esforço enorme.
— O que perdemos, linda? — Pegou a mão dela na sua, beijando-a de novo, sem conseguir parar de olhar para ela.
Ella engoliu em seco, respirou mais fundo:
— Voo... Itália.
— Se perdemos o voo para a Itália?
Ela apontou para a calça que Carter estava usando. Era a calça da Adidas que havia usado no Coachella. Nem havia se dado conta, era uma coincidência. Apenas pegou o que sua mão alcançou primeiro no armário e vestiu. Não havia se desfeito de nenhuma peça que estava na sua mala da lua de mel. Não sabia o motivo, apenas não conseguia, ainda que raramente usasse. Puxou a cadeira, se aproximando ainda mais de Ella. Respirou fundo.
— Linda, nós fomos para a Itália, você lembra?
Ella parou, como que tentando buscar alguma coisa mentalmente.
— Aqui, Itália?
— Não, nós... estamos em Montreal. Ok, você está com sono, não é? — Ela afirmou que sim e ficou claramente ansiosa ao ouvir que estavam em Montreal. Não era o que Carter queria, mas também ficou levemente ansiosa com aquela resposta. Então, ela não lembrava...? Se deteve. Isso era um problema para depois — Vamos dormir?
— Carter...
— Sem esforço, linda, por favor.
Ella olhou, como que querendo criar um espaço na cama. Carter sorriu, sabia o que ela queria.
— Cabe nós duas.
Ella sorriu. E Carter se colocou de pé, tocando-a delicadamente. Ela estava tão frágil que podia carregá-la tranquilamente. Era necessário mudá-la na cama com uma determinada frequência para evitar machucados por imobilidade. Carter costumava fazer isso. Havia sido bem difícil se acostumar com a ideia de outras pessoas tocando em Ella quando ela estava inconsciente, incapaz de se defender. Ficou maluca com isso. Instalou câmeras de segurança, se aproximou da equipe o máximo possível, fez terapia. Enfim, havia passado por tanta coisa.
Carter costumava dormir perto dela, e isso não havia acontecido apenas duas ou três vezes. Aconteceu tantas vezes que nem fazia ideia de quantas foram. Noites em que não ia pra casa e acabava dormindo ali mesmo, pertinho dela. Bem, a moveu devagar, tirou seus próprios chinelos e subiu com ela na cama. Quando se deitou e Ella recostou em seu corpo...
Ah, ainda não parecia real de jeito nenhum. A colocou no peito, beijou os cabelos dela, apertou-a suavemente nos braços, fechou os olhos. Era real. Era verdade. Estava com sua esposa acordada no seu peito outra vez. Ficou só um pouquinho acordada. Ella pegou no sono em minutos, e Carter também acabou dormindo. Nem sabia explicar muito bem como conseguiu, mas quando a sentiu nos seus braços, apenas... pegou no sono, em uma tranquilidade que não sentia há anos.
Acordou umas duas horas depois, e Ella seguia dormindo, mas era claramente diferente. Era o cérebro vivo, enviando mensagens de que estava ativo. A respiração estava diferente e havia... pequenos movimentos nela. Espasmos nos dedos, em alguns músculos. Movimentos que nunca estiveram ali antes durante aquele tempo todo. Estava mesmo acontecendo.
Carter deixou um beijinho nela e se levantou. Foi até o banheiro, lavou o rosto e, quando retornou, Sky estava olhando através do vidro. Caminhou até ela.
— Carter, ela realmente...?
— Acordou — Seguia sorrindo sem conseguir evitar.
— No grupo do hospital, só se fala sobre isso, mas eu não tinha certeza de que, sei lá, não era um delírio coletivo! — Sky estava sorrindo, empolgada demais.
— Eu não tenho certeza de que não é isso até agora! E eu já a vi acordada, já ouvi a voz dela, mas ainda assim... — Os olhos se encheram de novo.
Sky a abraçou com muito carinho.
— Tudo bem, tudo bem. Escuta, quer tomar café da manhã? Você precisa. A agenda da Ella começa às dez, com uma equipe multidisciplinar, e acho que o dia será longo.
Carter olhou bem para ela.
— Você está usando maquiagem ou...?
— Claro que sim! Se a Ella estivesse mesmo acordada, eu precisava estar bonita para conhecê-la.
— Ah, mas deixa de ser descarada! Você é médica dela!
— Fisioterapeuta — Sky respondeu, tranquilamente.
— Fisioterapeutas não são médicos...?
— NÃO! — Respondeu, agora rindo demais — Garota, como você dirige uma farmacêutica?
— Eu não sei! Era a minha esposa que fazia isso. Ela deve saber que fisioterapeutas não são médicos. Hum, você está bonita mesmo.
— Estou, eu sei! E você veio num conceito assim, meio moradora de rua, né? — A pegou pelo braço, já levando Carter para a cafeteria.
— Por isso odeio esta cidade. Ninguém me diria algo assim no Rio de Janeiro pelo simples fato de que nenhum morador de rua jamais estaria vestindo Adidas! Eu nem usava Adidas antes. Essa calça mesmo foi a Ella quem comprou pra mim.
Sky estava rindo sem parar. Carter era uma graça.
— Chega, vamos comer alguma coisa. A mãe da Ella está vindo ali, não é?
Estava mesmo. Carter falou com Nia rapidamente. Grace havia ido pra casa, tinha uma prova importante, mas voltaria assim que terminasse. Sendo assim, Carter decidiu ir tomar café com a falsa daquela fisioterapeuta na cafeteria do hospital. Pegaram uma mesa, fizeram os pedidos e Carter ainda estava se sentindo meio anestesiada.
— Você deve estar pensando em muita coisa, né? — Sky perguntou.
— Menos do que eu deveria. Desde que ouvi que a Ella havia acordado, ainda não consegui pensar em muita coisa. Raina veio comigo, não está me dizendo tudo o que está pensando com toda certeza, e eu só... não sei. Não sei como serão as coisas, o que terei que fazer. Só penso... na Ella. O tempo inteiro — Os olhos se encheram de novo, e Sky tocou suas mãos. Ela era uma descarada, mas uma boa amiga.
— Não fica nervosa, vamos.
— É que... É como se fossem duas vidas, sabe? A vida que estou seguindo com a Raina e a vida que não pude seguir com a Ella. Parte minha continua naquele acidente, e eu não consigo parar de pensar nas coisas que a gente queria fazer, nos planos que foram interrompidos. Coisas que eu tinha medo de que nunca mais acontecessem e que agora podem acontecer. Mas eu não fiquei lá, eu andei. E quando a Ella souber disso...
— Carter, foram cinco anos. Ela vai entender.
Carter sorriu.
— Ella Schafer é como uma vespa-mandarina, você não faz IDEIA dessa garota! Ela não vai entender, e agora estou sentindo que joguei fora o meu casamento e vou jogar fora o meu namoro. Daí que estou muito ansiosa com a Raina e, ao mesmo tempo, eufórica porque a minha esposa acordou! — Estava sorrindo e lagrimando — Mas posso estar grávida de outra, dessa garota compreensiva, companheira, de quem gosto muito. Olha essa bagunça toda, Sky.
— Ella Schafer é muito geniosa...?
— Muito! Ela é pequenina, tem aquela carinha linda, mas é geniosa pra caramba. Ela não vai entender, porque acho que ela nunca faria algo assim se fosse o contrário, e eu só... não sei o que fazer, mesmo.
— Ninguém sabe exatamente o que fazer ainda. Tudo acabou de acontecer, Carter. Não fica se cobrando tanto assim também. Come o seu sanduíche, toma o seu café. Está tudo bem. A Ella acordou, sabe? — Explicou, sorrindo — Nada supera isso.
E devia ser por isso que Carter não estava conseguindo pensar em nada diferente. Sua ansiedade se derreteu em um sorriso apenas de pensar nisso outra vez. Quando voltou para o quarto, Ella ainda estava dormindo, e a terapeuta estava esperando por Carter e Sky.
— Senhora Schafer, bom dia. Você teria alguns minutos? Estamos com a equipe multidisciplinar reunida e gostaríamos de explicar mais ou menos como agiremos daqui pra frente.
— Ah, claro que sim. Minha sogra está...?
— Aguardando na sala também. Vamos falar com vocês duas.
Foi para a sala indicada, cheia de profissionais, incluindo Sky, com Nia sempre bem-vestida, e Carter de chinelo, calça esportiva e camiseta. Era provável que aquela versão fosse mais próxima de quem ela costumava ser do que a executiva no comando de uma grande empresa. Foi algo que pensou. Era uma reunião de alinhamento, na verdade. Ainda se sabia muito pouco sobre o real estado de Ella, apenas que aparentemente não existiam danos cerebrais. Por outro lado, as memórias dela estavam claramente bagunçadas. Reconheceu a mãe; elas já tinham conversado um pouco, mas algumas lembranças pareciam deslocadas no tempo.
— Às vezes, o cérebro apaga memórias para retenção de danos — A terapeuta explicou.
— Mas ela esqueceu a nossa lua de mel — Carter disse, um pouco triste.
— E isso são quantos dias antes do acidente?
Respirou fundo, recordando.
— Oito dias. Ela me perguntou se perdemos o voo para a Itália, lembra do Coachella, lembrou dessa calça que estou usando, mas não lembra do voo.
— Essa confusão é normal, senhora Schafer. Pode ser que ela lembre das coisas posteriormente, quando o cérebro estabilizar, se organizar melhor. Precisamos ter em mente que ela não faz ideia de quanto tempo se passou. Ela dormiu aos 27 anos, recém-casada, na primavera de 2019, e está acordando agora, aos 32 anos, na primavera de 2024. O mundo é completamente outro. Tivemos uma pandemia global, muita coisa mudou, a configuração familiar de vocês mudou muito. Ela não sabe de nada disso, e todas essas informações precisam ser introduzidas de maneira gradual.
Nia e Carter trocaram um olhar. A configuração familiar havia mudado mesmo. Haviam perdido parentes na pandemia, Carter havia perdido o pai. Chegaram perto da falência com a farmacêutica, mas superaram e foram úteis para o país. E como casal, era bem provável que estivessem ainda em um limiar... perigoso de contas. Carter havia investido parte de sua herança na empresa e a outra parte no tratamento de Ella. Não era nada muito novo para Carter. Viver de salário já havia sido uma realidade antes, e agora tinha um ótimo salário como CEO. Mas achava que isso podia ser algo que assustaria sua esposa. Eram problemas para o futuro.
A apresentação seguiu, mostrando todos os exames e testes que já tinham feito e os que fariam. Durante aqueles primeiros dias, teriam reuniões diárias para discutir o caso e a evolução de Ella. Por fim, Carter ficou apenas com a terapeuta. Nia precisava ir pra casa e saiu com uma lista de coisas que a filha precisaria.
— Ela me fará perguntas — Carter se adiantou em dizer.
— Sua esposa não está exatamente conseguindo falar, senhora Schafer.
— Ah, ela fará perguntas, não duvide disso. E as coisas agora estão... diferentes. Fora que a Ella odeia mentiras. Realmente não sei se mentir é uma boa ideia.
— Não será mentir, senhora, será mais... omitir coisas que possam deixá-la nervosa. É melhor deixar as coisas lineares, até termos uma imagem ampla do real estado dela como um todo.
Carter respirou fundo e, mesmo discordando, decidiu acatar a orientação.
— Ok.
Então ouviram alguém batendo na porta e entrando em seguida. Era uma enfermeira:
— Com licença! É, desculpe interromper, mas a senhora Ella está exigindo a presença da esposa antes de ir para os exames.
A terapeuta alongou o olhar para a moça.
— A senhora Ella está falando...?
— Não, senhora.
— E como está exigindo algo?
A moça fez um gesto: o indicador da mão direita apontando incisivamente para o dedo anelar da mão esquerda.
— Está exigindo deste jeito e com os olhos clarinhos, bem ferozes. Daí presumimos ser uma exigência. A gente se sentiu... exigido.
Carter riu.
— Está vendo como conheço a minha esposa? — Levantou-se e, imediatamente, caminhou para o quarto.
E aham, lá estava sua delicada esposa: acordada, sentada, com pontos falsos no supercílio daquele rostinho lindo, se recusando a ir para os exames sem precisar dizer uma palavra.
— Ella Schafer! — Carter sentou-se na cama, de frente para ela, que sorriu para o seu tom de bronca — Precisa fazer os seus exames, hum? — Beijou a mão dela, tocou aquele rosto lindo e acabou sorrindo de novo. Ainda não acreditava.
— Demos uma lousa, mas ela se recusa a escrever, senhora — A enfermeira explicou.
Carter olhou para sua esposa, que fez outro gesto. Um que a fez rir.
— Celular? — Era isso, era o celular — O seu celular? — Não, não era isso — Ah, o meu celular! Não acho que posso te entregar um celular, linda. Você... dormiu por muito tempo. Ainda vamos conversar sobre isso.
Ella olhou para a enfermeira e pediu a lousa. Tentou escrever, mas era muito difícil. As mãos estavam trêmulas e a caligrafia saiu como se tivesse cinco anos, mas saiu.
“Quanto tempo?”
Carter respirou fundo, lendo o que ela havia escrito, e então olhou para sua esposa, que parecia altamente ansiosa. Daí, buscou pela terapeuta:
— A mente dela está ativa, precisa de respostas.
— Mas, senhora...
— Ela não vai parar até ter algumas respostas simples.
Ella escreveu de novo, bem rápido, letra acidentada, nervosa:
“Eu te machuquei?”
Foi uma pergunta que pegou Carter muito de surpresa.
— Se você me machucou...?
Ela escreveu novamente:
“Foi acidente, eu causei? Machuquei nós duas?”
Então era isso, aquela ansiedade naqueles olhos clarinhos. Carter se aproximou ainda mais dela, fazendo outro carinho naquele rosto lindo.
— Não, meu amor, você não me machucou. Você se machucou sozinha. Ella, a terapeuta acha que devemos ir devagar com as informações, porque ainda não sabemos o seu grau de consciência e...
Ella escreveu de novo: “Acordada”. E seguiu escrevendo, mesmo com a caligrafia irregular:
“Ella Scharfer-Arnault, nascimento: 10/01/92, Montreal. Casamos em 12/04/19, de preto, nossa cor favorita. Temos uma farmacêutica. Você, com febre – Coachella. Passamos farmácia, compramos Tylenol, você alergia a aspirina.”
Terminou e mostrou para Carter e, então, para a terapeuta, que se aproximou.
— Isso está... certo? — A terapeuta estava claramente surpresa.
— Tudo correto e...
Ela apagou tudo o que havia escrito e escreveu novamente:
“Acidente?”
Carter olhou para a terapeuta.
— Eu poderia ter dez minutos com a minha esposa?
A terapeuta pensou um pouco. Ella apagou de novo, escreveu novamente e mostrou para a terapeuta:
“10 minutos com a minha mulher, nós pagamos a conta aqui.”
— ELLA! — Carter não acreditava naquela garota! Ela apagou e escreveu mais uma vez:
“Você paga, não é?”
— Sim, eu pago, mas... — Olhou para a terapeuta, contendo uma vontade de rir — Me desculpe, não tem como vencer a minha esposa numa discussão. Dez minutos, por favor. Eu sempre tive ótima intuição quando se trata da Ella. Precisamos mesmo conversar.
Ella pediu outro segundo e escreveu novamente: “Com fome.”
Carter riu de novo. Sua esposa não existia mesmo.
— Ela ainda não comeu? — Perguntou para a terapeuta.
— Não, senhora. Ela não fez os exames ainda, porém está sendo alimentada por via intravenosa. Vamos introduzir alimentos líquidos ainda hoje, se tudo estiver OK.
Ella escreveu de novo: “Água?”
E aquilo pegou Carter pelo coração, porque era um pedido absurdamente simples. Falou com a terapeuta:
— Apenas água, não deve fazer tão mal. Ela só quer sentir alguma coisa.
A terapeuta checou com o médico rapidamente, explicou toda a situação: água, apenas água, para uma garota que não sentia nada há cinco anos. Trouxeram água para ela e, finalmente, foram deixadas sozinhas. Carter abriu o copo de água, colocou um canudinho e aproximou da boca dela.
— Bem devagar, OK?
OK.
E, bem devagar, ela começou a beber, e um prazer enorme se pintou no rosto dela apenas por sentir aqueles goles de água. Era um copo pequeno, de 100 ml, mas que ela bebeu até o final. Lambeu os lábios quando terminou, respirou fundo, fechando os olhos por um instante e abriu um sorriso.
— Bom — Ella conseguiu dizer, bem baixinho, fazendo Carter sorrir.
— Imagino que muito bom. Linda, eu vou te contar o que aconteceu, mas você precisa ficar tranquila, ainda que fique confusa com algumas informações, tudo bem? Acha que podemos fazer isso?
Ela afirmou. Podiam, sim.
— Ok. Você lembra, então, do Coachella e de quando fomos para o hotel?
Lembrava, sim. Escreveu na lousa:
“Aero. Café.”
— Isso, fomos para o aeroporto pela manhã e tomamos café na sala VIP. Você se lembra de mais alguma coisa?
Ela ficou quieta, como quem busca informações. Negou.
— OK. Bem, nós embarcamos para a Itália e, como o previsto, ficamos dois dias em Roma. Então dirigimos até a Costa Amalfitana.
Ella escreveu novamente: “Pensei que bati o carro.”
— Enquanto dirigia? Não, nós chegamos à Costa Amalfitana, foi tudo bem. Depois pegamos um barco até a Ilha de Capri, e foi lindo, Ella — Acabou sorrindo só de lembrar — A ilha é deslumbrante. Ficamos muito felizes lá. Nosso hotel era lindo, tinha... — Ella apontou para a laranjeira no vaso, e Carter sorriu novamente — Laranjeiras, isso. E muito limão-siciliano. Você amou os sorvetes e disse que comemos a melhor lasanha da vida. Eu também achei que foi a melhor. Nós quase não saímos do quarto nos dois primeiros dias, estávamos muito... apegadas uma na outra, fazendo amor sem parar — Contou, e ela sorriu, brilhando aqueles olhos — Mas saímos nos outros dias e conhecemos um casal como a gente, de brasileiras, em lua de mel. Elas haviam alugado um barco e, por algum motivo, você quis ir — A extrovertida do casal era Carter; Ella sempre preferia que ficassem sozinhas — É... estávamos felizes. Você tomou alguns spritzs, aquele drink italiano. Estava teimosa — Olhou para baixo, porque seus olhos tinham se enchido.
— Desculpe — Ela conseguiu dizer baixinho.
— Não, você que precisa me desculpar, porque eu — olhos cheios, cabeça baixa — não consegui cuidar de você direito, linda.
Ella segurou a mão de sua esposa e pegou a lousa de novo, escreveu: “O que fiz teimosa?”
A pergunta fez Carter sorrir um pouco.
— Estávamos no passeio de barco. Paramos em um lugar muito bonito, mas o capitão pediu atenção quando fôssemos descer. Podia ser perigoso. Você e a outra garota queriam saltar. Eu pedi pra você não saltar e nós... brigamos. Disse que, se você queria tanto, podia ir sozinha. Eu ia pegar algo para comer. E fui — Lagrimou, porque não existia dia que Carter não se perguntasse por que só não pegou sua esposa no colo e a enfiou na cabine até a teimosia passar. Carter não bebia naquela época e detestava quando Ella bebia, era um dos poucos pontos no relacionamento delas que fazia ambas se desentenderem. Porém, naqueles dias na Itália, até Carter provou alguns drinks; estavam felizes assim — A garota saltou, tudo foi bem, e você saltou em seguida e... tinha uma pedra no fundo. E não era tão fundo assim. Foi nessa pedra que você bateu — A imagem do sangue surgindo no azul inacreditável do Mediterrâneo era algo que comumente aparecia em seus pesadelos; Carter não conseguia esquecer.
Ella ficou quieta, como que absorvendo aquelas informações. Então pegou a lousa e escreveu: “Estraguei nossa lua de mel, sinto muito, linda.” Carter sorriu.
— Não tem problema, você acordou agora.
— Quanto tempo? — Ela insistiu, voz quase sem sair.
— O tempo... Vou te entregar o meu celular agora. A senha é... — Pegou o celular e colocou na mão dela — Qual é a senha, linda?
Ela encarou a tela de bloqueio.
— Nosso... apartamento — A foto da lockscreen era a vista do apartamento delas, e isso distraiu Ella. Ela, aparentemente, não viu a data.
— Nosso apartamento, isso. E a senha, qual é?
Ela pensou um pouco e digitou: 300917. Era a data na qual tinham se reencontrado no Brasil. A tela desbloqueou e foi estranho para Ella: não tinha uma foto sua ali. Carter sempre usava uma foto sua como wallpaper, mas agora havia outra imagem genérica no lugar: a foto de uma tatuagem bem pequena na parte de dentro de um braço: “temporary, temporal”, ou seja, “temporário, temporal”.
— Sua?
— Minha, aqui — Virou o antebraço e mostrou para ela. Era uma tatuagem que havia feito para se acalmar, para lembrar que as coisas são temporárias, inclusive os temporais. Era um jogo de palavras.
— Bonita.
— Bonita, não é? — Deixou um beijinho na mão dela — Ella, por que você queria o celular?
— Escrever — Então deslizou a tela para baixo novamente e, finalmente, viu a data. Ficou imediatamente confusa. Subiu a tela, abriu o bloco de notas e escreveu: “Treze de abril. Coachella...?”
— Treze de abril, mas olha o ano.
Ella baixou a lockscreen novamente e apertou a expressão, olhando para a data. Então, aqueles olhos de oceano ficaram apavorados.
— Ella? Ella, está tudo bem. Lembra que você não pode ficar nervosa? Está tudo bem. Olha pra mim, hum?
E ela apenas largou o celular, os olhos se enchendo, as mãos se agarrando em Carter, que a abraçou imediatamente. Ella ainda tentou dizer alguma coisa, mas foi balbuciado, a voz sumindo, a respiração ficando ofegante, o corpo tremulando, e o choro apenas a tomou: intenso, desesperado, apavorado.
— Linda, calma, calma — A voz de Carter foi embargando também, o corpo tremulando. Era o primeiro abraço denso, amplo, era a primeira vez que sentia o coração dela batendo contra o seu outra vez em cinco anos — Eu te amo. Passamos por isso, mas já acabou. Acabou agora. Está tudo bem.
Ella se agarrou com toda a força que tinha em sua esposa, na mulher que amava, mas algo lhe dizia, desde quando havia acordado naquele lugar estranho, que não estava tudo bem, que nada estava bem. Algo de muito ruim tinha acontecido; seu corpo lhe dizia isso, sua intuição lhe dizia isso, e agora apenas... se concretizava. Tinha se acidentado. Havia dormido por cinco anos. Que loucura era aquela?
Não estava tudo bem. Não havia como nada estar bem.
Notas da Autora sobre Água Rasa: Tessa Reis
Olá, todo mundo!
Como estamos? Eu não sei vocês, mas Ella Schafer acaba de acordar de um sono meio longo, e o mundo está um pouquinho diferente daquele que ela conhecia. Tivemos um capítulo muito intenso, cheio de emoções, que deu pra gente perceber, ao menos um pouco, a personalidade da nossa Bela Adormecida. Sei que esse finalzinho deu uma apertada no coração e, por isso, no próximo capítulo, iremos viajar um pouquinho para trás, para entender onde a história de Ella e Carter realmente começou. 😊
Próximo capítulo: "Carter"
Retornamos dia 18/01
Grande beijo!
Tessa.
Kkkkkkk a Ella irá surtar quando descobrir que a Carter tem outra e que pode estar grávida dessa outra...
Tenso esse capitulo, agora sabemos como a Ella e teimosa, sera que ela ira perdoar Carter quando souber de tudo que aconteceu quando estava no hospital em coma. Raina sera que vai querer continuar com seu namoro com a Carter muitos capitulos ainda para serem desvendados esses acontecimentos.
Uau! Que intenso e lindo! Todos conhecemos uma baixinha temperamental e parece que Ella é dessas. Quero só ver quando ela souber da Raina....kkkkkk