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Água Rasa 3

Atualizado: 18 de jan.


Capa Água Rasa
Água Rasa

Carter


Schafer & Arnault Inc., 7 anos atrás.


— Você não pode estar falando sério comigo! — Ella estava furiosa, andando de um lado para o outro dentro daquela enorme sala de reuniões que só tinha duas pessoas: ela mesma e Vicent Arnault, um dos sócios-fundadores da empresa.

— Ella, nós vendemos medicamentos! Eu não estou inventando nada. Vendemos remédios, é isso que fazemos, é isso que eu fazia com o seu pai há mais de 40 anos!

— Vendemos medicamentos, mas fazemos medicamentos também. Aliás, era a parte do meu pai aqui dentro: desenvolver pesquisas, criar drogas novas. Com todo respeito, senhor Arnault, eu não vou permitir que a nossa empresa se torne a próxima Valeant!

— Nós não iremos nos tornar a Valeant, Ella, por favor!

— A sua proposta é exatamente o mesmo modelo de negócios da Valeant e, não, eu não vou deixar isso acontecer — Disse, encarando-o firmemente.

— Você não me desafie, garota!

— Não é um desafio, é só um aviso: o senhor não vai fechar os nossos laboratórios.

— Eu não quero fechar, quero apenas reduzir. E subir os valores dos medicamentos que nós mesmos desenvolvemos.

— E aos quais temos direito pleno sobre a única fórmula no mercado. Há pessoas que dependem desses medicamentos para viver. Não é uma aspirina, uma dipirona; são medicamentos vitais para algumas pessoas, de uso contínuo, e não, eu não vou deixar que uma droga de uso contínuo custe mais de trinta por cento da renda de alguém.


Vicent se colocou de pé.


— Ah, eu estou tão cansado de você! E a culpa disso tudo é do seu pai que decidiu morrer e da minha filha que não acorda para a vida! Eu não tinha mais que estar aqui se ela tivesse dois por cento de juízo. Eu devia estar curtindo férias ininterruptas em alguma ilha no Caribe e você transformaria essa empresa numa instituição filantrópica, que eu não estaria ligando!


Ella parou um instante. Os cabelos soltos, longos, o vestido preto, de laterais elegantemente vazadas, deixando ver um pedacinho do seu abdômen. Os saltos altos, a postura impecável, os olhos mais escuros. Era um fenômeno real: os olhos dela ficavam mais escuros em ambientes de luz artificial.


— Isso é sério? — Perguntou para ele.

— Qual parte exatamente...?

— Que, se a sua filha assumisse a sua parte na empresa, você se aposentaria?

— Ella, eu estou com 73 anos, tive a minha única herdeira tardiamente e, com toda certeza, esperava que ela estivesse aqui tomando conta de tudo aos 26 anos, ao invés de estar permanentemente de férias no Rio de Janeiro!


Aquela reunião privada terminou assim. Uma semana depois, Ella estava caminhando em passos super-rápidos em direção à sua sala, sendo seguida de perto por Sahara.


— Mas, por quanto tempo?

— Uma semana, no máximo — Ella respirou fundo, procurando uma informação no iPad — Você sabe onde ela mora?

— A Catherine?

— Do que estamos falando aqui, Sahara, pelo amor de Deus?! Claro que é a Catherine! Enviamos dinheiro para essa garota todo mês, deve ter o endereço dela em algum lugar.

— Ella, você simplesmente vai bater na porta dela...?

— Sim. Ela não atende o celular, não a encontramos em rede social nenhuma, não responde aos e-mails que estamos enviando. Então, só me resta ir falar com ela pessoalmente.

— E qual é o seu plano?

— Trazer essa irresponsável até aqui para que ela resolva as questões do pai dela antes que ele nos afunde! Você acha justo? A gente trabalha aqui desde os dezoito anos, Sahara, enquanto ela está em férias contínuas em alguma praia exótica do Rio de Janeiro. Vou trazer essa garota pra cá, de uma maneira ou de outra! Ao menos, este problema do retrógrado do pai dela, ela vai ter que resolver.


Comprou uma passagem ainda naquela noite e, no finalzinho da tarde do dia seguinte, Ella já estava voando para o Rio de Janeiro. Treze horas depois, pousava numa cidade completamente desconhecida, para encontrar alguém cuja última vez que havia visto devia fazer uns doze anos. Lembrava que frequentavam a mesma escola no fundamental, inclusive junto com Sahara, filha de outro sócio da empresa. Mas, quando tinham uns treze anos, os pais se separaram, e Catherine foi morar no Rio de Janeiro com a mãe, que era brasileira. Desde então, perderam contato.


Ella não tinha nenhuma atualização sobre a vida dela: não sabia o que fazia, onde tinha se formado, ou se tinha se formado. Ella havia feito tudo muito cedo. Entrou para a faculdade aos dezessete, se formou aos 21 anos e, hoje, aos 25, já tinha uma pós-graduação e um MBA no currículo. E, há um ano, desde a morte repentina do pai, havia assumido a posição dele na empresa.


Era tenso, complexo. A sociedade de seu pai com Vicent Arnault havia sido edificada assim: seu pai, Eric Schafer, era pesquisador, filho de imigrantes buscando uma oportunidade. Vicent, um empresário vindo de uma família tradicional de investidores, old money pra valer, estava interessado no ramo farmacêutico. Por tudo isso, Ella fora criada para cuidar dos negócios, mas Catherine havia sido criada para... ser herdeira.


Chegou ao Rio quase às dez da manhã. Decidiu subir para a sala VIP rapidinho, tomar um banho e um bom café da manhã. Deu uma olhada no vídeo gravado durante o pouso. O avião chegando por cima daquele mar deslumbrante... Aquela cidade era bonita mesmo, e não havia visto nada ainda. Retirou um carro alugado no aeroporto. Descobriu que o endereço de Catherine não era na capital, mas numa cidade a duas horas e meia dali.


Estava muito ansiosa. Quanto mais cedo falasse com ela, mais rápido poderia retornar para Montreal. A estrada era deslumbrante. Natural, com túneis de pedra sem asfalto. Pareciam recortes no meio do nada, pedras cortadas apenas para dar passagem, mas sem alterar totalmente a natureza. Árvores formavam um enorme telhado de galhos. A beleza da estrada a distraiu e, quando percebeu, já estava chegando.


A cidadezinha praiana era lindíssima, com um mar cristalino e ruas pequenas, apertadas. Eram quase quatro da tarde — não parecia um horário inconveniente para bater na porta de alguém.


Estava calor. Não esperava tanto calor e não havia feito a melhor escolha de roupas. Usava calça jeans, top branco elegante, os cabelos soltos. Sabia que teria problemas assim que saísse do ar-condicionado do carro. Prendeu os cabelos parcialmente para trás, tirando a franja longa do rosto, subiu por uma rua inclinada, muito apertada, e finalmente chegou ao destino.


— Ah, que ótimo! — Era um condomínio com portaria, não uma casa onde podia simplesmente bater na porta. E era menos luxuoso do que tinha em mente.


Não é que fosse ruim, de forma nenhuma, só não era luxuoso. E, OK, alguém estava vindo. Ella não falava duas palavras em português. Baixou o vidro quando viu o rapaz se aproximando.


— Boa tarde! Tudo bem? No que posso ajudar?


Não entendeu coisa alguma, mas abriu seu melhor sorriso por baixo dos óculos escuros e:


— Oi! É... preciso falar com Catherine Arnault.


Ele deu uma olhada para trás, buscando outra pessoa.


— É gringa, mano, mas acho que ela quer falar com essa... Qual o nome mesmo, moça?


POR DEUS, NÃO TINHA MESMO PREVISTO ESTA PARTE.


— Preciso falar com uma garota, Catherine Arnault. Ela mora aqui, é... — Pegou o celular, abriu o Google Tradutor, digitou o que precisava e então colocou para eles ouvirem.

— Ah, você quer falar com essa Catherine — O primeiro que havia falado com ela olhou para o outro — Catherine? Tem alguma Catherine aqui?

— Catherine...? Será que é a Carter?

— O nome da Carter é Catherine?

— Deve ser! A mina é gringa, deve ser amiga dela mesmo! — O outro se aproximou — Moça, é só seguir reto aqui, até a quadra. Não entendeu nada, né?


A cara dela respondeu por si só, então ele apenas liberou a entrada:


— Você veio para a festa, não é? Pode seguir!

— É para...?


Ele se aproximou e apontou.


— Festa, ali, você pode ir!


O que será que ele estava tentando lhe dizer, pelo amor de Deus...?


— Ah, Alex! Chega aí, essa mina aqui é gringa, quer falar com a Carter. Tô dizendo pra ela ir, mas acho que ela não tá entendendo nada.


Era um cara de moto que havia acabado de chegar. Ele emparelhou a moto com o carro dela e, ainda bem, falava inglês. Um inglês bem mais ou menos, mas falava. Inglês e francês eram as línguas nativas de Ella e ambas não podiam ser mais diferentes do português.


— Só me seguir, OK?

— Ah, OK!


E, sendo assim, seguiu aquela moto para dentro do condomínio, que era antigo, mas muito bonito. Cheio de árvores, muita natureza e muito perto do mar. Ella ouvia o som das ondas o tempo todo. Esperava parar finalmente em alguma porta, mas o cara parou numa quadra de tennis? Uma quadra de tennis com vista para o mar e uma área gourmet movimentadíssima. Ah, que ótimo! Era uma festa, claramente uma festa, com música alta e cadeiras de praia na quadra, onde acontecia um animado jogo de duplas entre pessoas em trajes de banho?


— O que vim fazer aqui...?

— Aí, qual é o seu nome? — O rapaz havia encostado de novo, metade da frase em inglês, metade em português.

— É… Ella.

— Ella? Ella é pronome aqui! Como que diz pronome em inglês? Ok, só desce, a Carter está por aí!


Ele simplesmente entrou na quadra, e Ella ficou se perguntando o que devia fazer. Era mesmo uma festa. Não tinha certeza se reconheceria Catherine se a visse, não falava o idioma para perguntar, e achou melhor sair e voltar mais preparada no dia seguinte. Mas, enquanto pensava em tudo isso...


— Ella?


Levou um susto enorme ao ouvir o seu nome sendo chamado e, quando se virou na direção da voz que vinha do outro lado do carro...


UAU!


Sim, sem sombra de dúvida nenhuma, podia, sim, reconhecer Catherine Arnault assim que a visse.


E ela estava linda. De short jeans, biquíni preto, cabelos molhados. A pele super bronzeada, um corpo forte, tonificado, delicadamente musculoso e aquele rosto...


Aquele rosto parecia uma obra de arte.


— É, sim... sou eu — Ella achou um sorriso depois que conseguiu descongelar — É... quer entrar?


Carter riu alto! Mas abriu a porta do carro e entrou do lado do passageiro.


— Você está na minha casa e me convida para entrar...?

— EU SEI! Desculpe, eu não devia ter vindo assim, você não deve estar entendendo nada. Eu... já estava de saída, notei que você está dando uma festa e...

— Ella, você veio de Montreal para Angra dos Reis.


Olhou para ela.


— Eu... É, eu vim.

— Então, deve ser importante, não é?

— É importante, mas você está ocupada, então...

— É meu aniversário.


Ella pensou um pouco.


— Trinta de setembro.

— Isso.

— Eu trouxe chocolates da Hummingbird e maple da Escuminac pra você.


Carter riu outra vez. Não estava acreditando que Ella Schafer estava bem na sua frente! E ela estava uma gata, bonita demais. Havia visto uma garota bonita parando de carro, mas quando ninguém desceu, Carter decidiu se aproximar. Só que, de jeito nenhum, podia ao menos IMAGINAR que tal garota fosse Ella Schafer.


— Amo esses chocolates! E amo maple, até do mais vagabundo.

— Eu sei, eu lembrei disso, só não me atentei para a data.

— Ella?

— Oi!

— Vamos descer? Daí, você me dá um abraço, come um pedaço de pizza. Estamos fazendo pizza no forno à lenha, está vendo?

— Está cheirando muito bem! — O cheiro de pizza invadia o carro desde que parou ali.

— E estão ótimas, eu mesma fiz a massa — Carter contou sorrindo, sem conseguir parar de olhar para aquela garota bonita — Daqui a pouco, meus convidados irão embora e a gente pode conversar, sem pressa. O que você acha?


Trocaram um olhar mais longo, e uma parte muito grande de Ella queria ficar. E, com uma certa urgência.


— OK — Respondeu sorrindo, aquele sorriso imperfeitinho, tão, mas tão bonito. Enquanto brilhava aqueles olhos claros, intensamente esverdeados, quase azuis na luz. Carter ainda não acreditava que ela estava mesmo ali.

— OK! — Carter abriu a porta, desceu do carro e deu a volta, indo abrir a porta dela — Vem aqui, vamos.


Ella saiu do carro e foi abraçada por Carter, de maneira muito próxima, muito apertada. Um abraço de corpo inteiro, onde estavam totalmente em contato uma com a outra, algo demorado, respirado de maneira muito alongada, diferente.


Feliz aniversário! — Ella sussurrou, ainda dentro dos braços dela e com os seus braços ao redor do corpo de Carter. A pele dela estava quente, salgada. Provavelmente havia acabado de sair do mar.

— Obrigada. Eu ainda não acredito que você está aqui! — Ela disse, as separando só um pouquinho, olhando Ella nos olhos. E que olhos lindos. Carter lembrava que eram bonitos, mas tanto assim? Se lembrasse que eram bonitos daquele jeito, talvez tivesse aceitado os convites do pai para voltar a Montreal em algum momento — Tudo bem. Você está com a sua mala no carro, né? Eu vi. Quer trocar de roupa, ficar mais à vontade?

— Acho que não trouxe nenhuma roupa que possa me deixar à vontade. Não fazia ideia de que é tão quente aqui!

— Não tem problema, vem comigo. Vou te mostrar meu apartamento, e você pode vestir algo meu. Hum, me deixa pegar a sua mala.

— Mas você acha que...?

— Você pode precisar de alguma coisa, não é? — Ela disse, já tirando a mala do carro, uma mala ENORME — Ella, como que nessa mala gigante não tem nada apropriado...?

— Não tem, eu juro — Respondeu sorrindo — Estou acostumada a ir para a praia, mas nas praias do Canadá.

— Daí, trouxe roupas para usar em praias canadenses. Estou entendendo — Carter brincou, já puxando a mala dela e apontando o caminho.

— Não trouxe roupas nem de praias canadenses. Acho que essa roupa aqui é a mais relaxada que eu trouxe.


Não surpreendia Carter em nada. Ella sempre havia sido a aluna mais exemplar do colégio. O uniforme dela era sempre o mais impecável, as notas também. Era difícil ser comparada a ela, quando, na verdade, era uma comparação bem covarde. Carter jamais seria tão inteligente, e menos ainda tão esforçada. E também nunca se vestiria tão bem quanto ela. Aquela mala devia estar cheia de roupas de grife, executivas, de YSL a Chanel. Tinha certeza. Lembrava que, quando olhava para ela ainda menina, imaginava que era esse tipo de mulher que Ella Schafer se tornaria.


Pronto. Entraram e, por dentro, o prédio era bem...


— É... rústico, não é? — Ella comentou, fazendo Carter rir.

— VELHO. Pode dizer que é velho. Tem muitos imóveis assim no Rio de Janeiro: antigos, mas em áreas privilegiadas. Trabalho aqui perto e queria um lugar com quadra de tennis. Daí, encontrei este condomínio. A quadra estava bem maltratada, mas consegui reformar. Está bonita agora, não está?

— Muito bonita! E tem como descer direto para a praia?

— Tem sim. Por trás da quadra tem uma escada que leva para uma praia quase privada. É... bem aqui — Ela apontou uma fechadura. Carter buscou as chaves no bolso, e Ella notou que tinha uma plaquinha na porta: “you still haven’t met all of the people who are going to love you”, ou seja, “você ainda não conheceu todas as pessoas que vão te amar”.


Fazia sentido. Inclusive, Ella pensava nisso com uma certa regularidade.


Carter abriu a porta e era uma delícia de apartamento.


Totalmente diferente do prédio velho, parecia recém-reformado. Era pequeno, mas aconchegante. Todo em branco, com detalhes em verde-natural. A cozinha ficava logo na entrada, seguida pela sala, com uma pequena varanda com vista para a quadra de tennis e o mar. Tinha muitas plantas e um comedouro de passarinho na sacada.


— Você pode usar o meu quarto. É bem aqui — Carter levou a mala para dentro do quarto, também super gostoso, confortável — Pode usar o que quiser do meu armário. Vou te esperar na sala, tudo bem?


Tudo bem, podia ser assim. Carter lhe deixou sozinha no quarto, e Ella ainda estava meio... atordoada. Com toda certeza, não imaginou que sua chegada seria assim, mas OK. Não havia sido nada ruim, no final das contas. Abriu o armário dela e era totalmente diferente do seu: tinha muitos jeans, shorts curtos, calças esportivas, camisetas, muitas camisetas. Biquínis também, aos montes. Alguns casacos, todos oversize. E tinha camisetas assim também. Ella tirou suas roupas e ouviu a voz dela na porta:


— Ella, tem biquínis na gaveta de baixo. Estão todos novos.

— Mas você acha que vou precisar de um biquíni...?

— Claro que sim! Escolhe um, vamos!


Abriu a gaveta e tinha muitos biquínis mesmo. Escolheu um sem pensar muito, branco e bem, é... mini. Não era mesmo um biquíni canadense. OK! Colocou o biquíni, achou um short jeans que lhe servia. Carter era mais forte, com toda certeza. Estava imponente fisicamente. Ela sempre havia sido a atleta dentre elas três. Aparentemente, isso não havia mudado. E agora ela exibia um abdômen forte, estilo Dua Lipa, que dava muita vontade... Tudo bem! Voltou a focar em se vestir e encontrou uma camiseta oversize esverdeada e cheia de flores grandes, alaranjadas, lindas demais. Daí, se olhou no espelho, deu uma arrumada nos seus longos cabelos, prendeu melhor e saiu do quarto.


— Mais adequado?


E o coração de Carter parou no peito outra vez. Sim, outra vez, porque a primeira havia sido quando notou que era Ella naquele carrão. E agora...


— Você está bem bonita, não é? — Carter disse casualmente, cruzando o braço no dela, a fazendo rir.

— Você está bem bonita também.

— Você achou?

— Aham, é... sim.

— Que bom, não é?

— Que estamos bonitas...?

— Que estamos bonitas juntas — Carter disse, dando mais uma olhadinha. Ella ficou levemente vermelha — Me conta, você almoçou?

— Não. Eu decidi vir direto. Disseram que o Rio de Janeiro é perigoso, fiquei com medo de dirigir de noite.

— Não é como dizem, não. Mas, temos pizza. Vou te apresentar para os meus amigos. Alguns falam inglês. Vai ser legal, prometo. E, não vou sair do seu lado.


Por algum motivo, aquela última frase mexeu com o coração de Ella.


E foi exatamente como ela havia dito. Desceram juntas, e Carter a apresentou para cada pessoa que estava naquela animada quadra de tennis. Ella achou que todo mundo morasse naquele condomínio, mas Carter explicou que não, eram amigos seus que moravam em outros lugares e que a casa dela era o melhor lugar para dar uma festa. Passaram pela quadra e foram até a área gourmet, que ficava umas escadas acima. Outra fornada de pizzas estava saindo naquele momento.


— Aqui, prova guaraná.

Guanará?


Carter sorriu. Tão bonitinha, como podia?


Guaraná, é bem gostoso. Quer portuguesa ou calabresa?


Ella a olhou, absolutamente confusa.


— Prova das duas, não tem problema — Pegou um prato e colocou duas fatias para ela.

— Então, vocês sempre fazem festas aqui? — Ella estava curiosa.

— Sim, e nem sempre é necessariamente uma festa, sabe? Às vezes, a gente só vem pra cá, faz pizzas no forno de pedra ou um churrasco. Daí jogamos tennis, ouvimos música. Já chegamos a ficar aqui de um almoço até a manhã do dia seguinte.

— E todo mundo gosta de tennis?

— Alguns já gostavam, outros aprenderam aqui e acabaram apaixonados também. Hum, olha naquele canto, é a mesa das nerds. Elas jogam xadrez.

— Você já quer me colocar com as nerds!

— Cresci te vendo com as nerds! Mas, hmm... — Carter tomou um gole do seu guaraná e pegou a sua raquete — Hoje, você vai para a quadra de tennis comigo. Faz uns doze anos que você está me enrolando.

— Você ainda lembra disso?!

— Claro que lembro.


Ella provou o guaraná e exclamou:


— É MUITO BOM!

— Eu disse que era! Senta aqui, vou comer com você. Tem bolo de rolo de sobremesa, você vai amar bolo de rolo.


Sentaram-se juntas e, enquanto devoravam suas pizzas, que estavam mesmo deliciosas, conversaram sobre algumas coisas.


— Sou engenheira ambiental, trabalho numa ONG e dou consultoria em ESG em algumas empresas.

— Você...? — Aquilo pegou Ella de surpresa.

— Trabalho em projetos ambientais voltados para a preservação da Mata Atlântica e do oceano. Sou mergulhadora também. Hum, você se formou em Administração de Empresas, tem pós-graduação em Pesquisa Farmacêutica e MBA em Gestão Financeira e Controladoria. Meu pai AMA recitar o seu currículo pra mim — Contou sorrindo.

— MENTIRA!

— Você é a filha que ele gostaria que eu fosse. Mas não vamos falar do meu pai agora — Cater terminou seu refrigerante — Vamos dar um mergulho?

— Mas você diz, agora?

— Agora! O sol vai cair em breve. É lindo assistir do mar — E então a pegou pela mão — Vamos?


Olhos muito nos olhos. E Ella não tinha por que dizer não. Não queria dizer não. Pegou a mão dela e foram assim, de mãos dadas, até a praia. Passaram pela quadra, os jogos seguiam acontecendo, regados a muitas risadas. Claramente não existia nenhum profissional ali, apenas jovens se divertindo. Desceram para a areia e, quando Carter tirou o short...


O coração de Ella acelerou e ela não estava compreendendo. Por que ele estava acelerando tanto perto dela? Baixou os olhos, tentando não olhar tanto, tirou seu short também, a camiseta oversize em seguida, e aquela garota naquele biquíni branco... Carter não foi tão bem na missão de não olhar tanto. Ella estava linda. Um corpo natural, delicado e tinha algo acontecendo, sim. Carter podia quase tocar. Veio para perto devagar, pegou a mão dela outra vez.


— Você ainda tem medo do mar?

— Um pouquinho — Ella respondeu sorrindo. Era uma mentira, mas queria a mão dela na sua.

— Vamos entrar juntas. A água deve estar uma delícia!


E estava. Para quem era acostumada com as praias canadenses, as águas levemente geladas de Angra dos Reis eram um verdadeiro sonho! Ficaram no mar por algum tempo, rindo, conversando, curtindo as ondas, admirando o sol, a beleza das montanhas, aquela composição única que Angra oferecia. E foram ficando cada vez mais perto. Não sabiam muito bem como, mas, quando se deu conta, Ella meio que... estava nos braços dela. Carter estava abraçando-a por trás, protegendo-a das ondas mais fortes. E era bom, era simplesmente... gostoso.


Ela era uma gostosa, como podia?


Carter era uma mistura altamente bem-sucedida: filha de mãe negra, uma ex-modelo brasileira que, por algum motivo desconhecido, tinha se apaixonado por Vicent Arnault, um franco-canadense que não tinha beleza como destaque. E era apaixonada por ele mesmo, era algo que dava para ver. A separação a havia feito entrar em depressão. Não era algo que eles queriam, mas, em determinado momento, a diferença de idade falou mais alto, e a separação pareceu a melhor saída. Hum, Vicent devia ter seu charme quando mais jovem, porque dava para ver em Carter traços dele também, e não existia UM ÚNICO TRAÇO DAQUELE ROSTO que não fosse perfeito.


O pôr do sol foi realmente de tirar o fôlego.


Assistiram bem juntinhas, o corpo de Carter apoiando o seu, aqueles braços firmes ao seu redor. Mergulharam juntas algumas vezes, sempre de mãos dadas, Ella sob a proteção e os cuidados dela. Devem ter ficado quase uma hora no mar, conversando, rindo, lutando com as ondas e, então, no meio do arraste de uma onda mais forte, Carter a segurou mais firmemente. Ella continuou nos braços dela, mas de frente. Estavam o tempo todo recostadas uma à outra, mas sem contato visual, e quando Carter viu aqueles olhos claros contra a luz da tarde que se despedia...


— Seus olhos sempre foram azuis assim?

— Estão azuis...? — Ella não parava de olhar nos olhos dela também.

— Estão azuis — Mais especificamente, estavam da exata cor do mar de Angra.

— Acho que... só ficam azuis no Brasil. No Canadá isso não acontece, não — Disse, a fazendo rir demais.

— A luz do Rio de Janeiro é diferente, eu vivo dizendo isso!


Um pouco mais de olhos nos olhos e Ella girou nos braços dela, olhando para o pôr do sol mais uma vez.


— Isso é muito lindo mesmo.


Era muito lindo. Tudo ali, naquele momento, estava deslumbrante de tão bonito.


Quando o sol foi embora, elas voltaram para a areia. Carter havia descido com toalhas para elas. Se enxugaram, vestiram as roupas de volta e não deu para Ella escapar da tal quadra de tennis. E os amigos de Carter eram mesmo divertidos, incluindo as nerds do xadrez.


— Você lembra que eu te ensinei uma vez? — Ela perguntou, quando já estavam entrando na quadra.

— Mas eu tinha doze anos, Carter!

— E se saiu muito bem! Mas meio que... fomos interrompidas — Carter lembrava muito bem daquele dia, porque havia sido o dia do divórcio dos seus pais. Alguém havia ido buscá-la no clube; sua mãe precisava dela, foi tudo o que lhe disseram.

— Você teve que ir pra casa. E depois daquele dia, a gente nunca mais se viu.

— Saí de férias com a minha mãe e nunca mais voltamos para Montreal.

— Ela está bem?

— Sim, está. Trabalha em um escritório de advocacia na capital, formado apenas por mulheres e que só atende mulheres. Ela vai adorar te ver, sabia?!

— Você acha mesmo? — Ella sorriu.

— Sei que vai. Podemos fazer isso juntas. Tudo bem, vamos lá, retomar sua aula de tennis de doze anos atrás!


Carter explicou algumas regras básicas e a ajudou com posicionamento. Mostrou como segurar a raquete e como era melhor para o corpo dela executar alguns movimentos.


— Segure como uma espada afiada de samurai — Carter estava explicando.

— Forte assim?

— Na verdade, não precisa ser forte, só precisa ser firme. Você não deixaria uma espada numa pegada frouxa, não é? É o mesmo — Se posicionou atrás dela, a mão no punho de Ella, delicadamente — O forehand você abre o golpe como se fosse um leme e vai terminar bem aqui — Levou a raquete até o ombro dela — Quando estiver batendo mais forte, esse golpe vai passar por cima da sua cabeça para poder desacelerar!

— Por cima, tipo...?

— Por cima, assim — Moveu o braço dela, fazendo o movimento. E estavam muito próximas.


Muito mesmo.


Pois que, de alguma maneira, Ella Schafer terminou aquela noite VENCENDO seis games seguidos, de um modo quase sobrenatural.


Na verdade, não tinha como ser natural mesmo. Tennis é um esporte complicadíssimo, que exige muita consciência corporal, coisa que, até onde Carter se lembrava, não existia muito em Ella, aquela que sempre conseguia as maiores proezas nas aulas de Educação Física. Mas, de alguma forma, aparentemente, existia uma tenista dentro daquele corpo delicado, uma tenista que concluiu seu último game fazendo ponto de forehand por cima da cabeça.


— OK, você é um fenômeno! — Carter estava dizendo, agora que todos os convidados já tinham ido embora, cada um levando suas cadeiras de praia, e elas estavam caminhando de volta para o apartamento.

— É como se... os movimentos só existissem em mim! — Ella estava muito feliz. Não era apenas por descobrir um talento novo que ela não fazia ideia de que tinha, mas também pela FESTA que fizeram ao seu redor quando venceu aquele último game. A torcida havia invadido a quadra, alguém a colocou no ombro, uma coisa TOTALMENTE INESPERADA — E seus amigos são muito legais!

— Eles são, não é? E adoraram você — Carter disse, sorrindo, já entrando no apartamento.

— Mesmo?

— Mesmo! OK, eu só vou tomar banho, e você pode ficar com o meu quarto.

— O quê? Não, não, não, Carter, eu vou para um hotel.

— Você já tem um hotel, por acaso?

— Ainda não, mas...

— Mas o Rio de Janeiro é um lugar muito perigoso.

— Mas você disse que não era bem assim!


Carter estava rindo.


— É perigoso mesmo. Então, você fica aqui. Já está bem tarde, você deve estar cansada. Dorme no meu quarto e a gente conversa pela manhã. O que acha?


Hum, não devia fazer tão mal assim dormir no apartamento dela. Ella ainda insistiu que podia dormir no sofá — era um sofá-cama bem confortável —, mas Carter afirmou que não tinha cabimento, ela podia ficar com o seu quarto. Carter tomou banho, se trocou, mostrou onde ficavam as coisas. Ella podia ficar à vontade.


Então, ficou. Tomou um banho longo, notou que havia ficado mais bronzeada e sorriu ao pensar no dia. Ella não fazia ideia de quando havia sido a última vez que tinha ido a uma festa e, menos ainda, se divertido tanto. Colocou um pijama americano curto, azul-marinho e, quando já estava quase indo pra cama...


Batidas na porta. Seu coração acelerou, por motivo nenhum.


— É... você pode entrar.


Carter entrou. Nada de pijamas, apenas um short curto de algodão e uma camiseta.


— Posso pegar uma coberta no armário? Eu esqueci de pegar.

— Ah, claro que sim.


Carter foi até o armário, abriu a porta e... Ella estava bem perto de si. Perto, cheirosa. Ela era cheirosa o tempo inteiro, aparentemente, anf!


— Ella?

— Oi... — Ela se aproximou ainda mais.

— Eu não esqueci de pegar nada, eu só... — Carter fechou a porta do armário e olhou para ela — Escuta, você pode só dizer que não, explicar que estou sentindo errado, que eu volto para o sofá e essa conversa nunca terá acontecido. Mas, desde quando te olhei dentro daquele carro, eu quero te beijar e não sei como vou conseguir DORMIR se eu não ao menos tentar.


O coração de Ella terminou de acelerar no peito.


— Você quer tentar me beijar? — Perguntou, olhos na boca dela, a respiração ficando ansiosa.

— Eu quero, Ella.


Não, não era o mais correto, não era algo que Ella deveria, mas, quando se deu conta, estava a puxando pela camiseta, grudando seu corpo contra o dela.


— Então... tenta.


Carter não pensou dois segundos. Enlaçou Ella pela cintura e beijou aquela boca.



Notas da Autora sobre Água Rasa: Tessa Reis


Olá, todo mundo! Estamos bem por aqui?


O Capítulo 3 de Água Rasa veio nos contar como Carter e Ella se apaixonaram e também mostrar um pouquinho da personalidade de cada uma, vivendo uma vida comum antes de a melhor coisa acontecer para elas (que foi se conhecerem) e antes da pior coisa acontecer para elas (o acidente de Ella).


No próximo capítulo, “No Fair”, vamos nos aprofundar ainda mais em Água Rasa!


Nos vemos no dia 23/1!


Grande beijo!

Tessa.


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2 commenti


que coisa mais linda essas duas gente!😍

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Tessa Reis
Tessa Reis
25 feb
Risposta a

A Ella indo buscar uma irresponsável e ganhando o amor da vida dela hahaha 💘

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