Água Rasa 5
- Riesa Editora
- 28 de jan.
- 22 min de leitura

Traumas
Agora, The Neuro Hospital.
A mente de Ella estava doendo.
Não era modo de falar, não era licença poética, era real. Estava doendo desde que viu aquela data que não fazia sentido. Estava esmagada, chacoalhada, cheia de cenas que não faziam sentido, que Ella não se lembrava de ter visto. Era como se alguém tivesse sacudido seu cérebro como um globo de neve e, agora, tudo estivesse confuso, nublado, condensado. Existiam duas pulsações furiosas nas laterais de sua cabeça, martelando forte de tal maneira que achou que fosse apagar. Mas não queria isso. Não podia apagar, não podia desesperar sua esposa ainda mais.
E só era extremamente SUFOCANTE que agora, de fato, não pudesse falar.
Sua voz havia sumido em definitivo. Tentava emitir sons, mas não conseguia nenhum, e não sabia como podia acalmar Carter. Não podendo muito, apenas a agarrou com toda a força que tinha (que não era muita) e a abraçou enquanto lutava para não desmaiar. Não podia desmaiar, não com a esposa tão nervosa. E ela havia ficado nervosa, Ella a quebrou com a sua reação. Cinco anos. Não eram alguns meses; eram cinco anos.
O que ela passou nesses cinco anos sem mim?
— Sinto muito, acho que é uma crise de dor, linda, não é nada. Você está calma? Eu preciso que você fique tranquila. Está sentindo alguma coisa? — Carter tentou se manter equilibrada, manter a voz calma, ainda que estivesse lagrimando sem parar. E dava para ver a dor nos olhos dela, muito claramente dava. Ela estava ferida, machucada, quebrada, e não podia ser diferente. Cinco anos. Haviam se passado cinco anos.
Ella apertou Carter contra o peito e, com muita dificuldade, acionou o botão de ajuda. Tinha um na cabeceira da cama; haviam lhe apresentado tal botão ainda naquela manhã. Precisava de ajuda, mas nem era para si mesma. Lutaria e ficaria calma de novo, sabia que conseguiria, mas, sem falar e podendo se mover quase nada, não tinha como acalmar sua esposa. E precisava acalmá-la, precisava cuidar dela. Sempre haviam cuidado uma da outra, e agora Ella havia falhado nisso. Falhado por cinco anos.
— Me desculpe. Eu não queria te deixar nervosa, não queria que — os olhos de Carter não paravam de encher — nada disso tivesse acontecido, mas aconteceu. Agora acabou. Acabou, linda. Isso já foi, já passou.
Mas Ella sabia muito bem que não havia passado. Sua esposa forte e determinada estava quebrada bem na sua frente, lutando para não estar, lutando para parecer bem, para parar de chorar. E Ella só achava que precisava de algo para a dor. Pensando bem, estava forte demais, talvez não sumisse apenas de se acalmar e...
Ah, não! Foi assim que terminei no chão.
Ainda viu Carter se movendo rapidamente para pedir ajuda, colocando-a de lado imediatamente, segurando-a firme enquanto usava o telefone para chamar socorro, absurdamente desesperada. Mas a equipe já estava vindo. Ella já tinha chamado sem Carter saber e, dali pra frente, lutou para que aquilo passasse rápido e que não apagasse completamente.
Não posso apagar, não posso apagar, não posso apagar.
Mas apagou. Não sabia por quanto tempo havia apagado, mas julgou que não tinha sido tanto porque, quando voltou a si, Carter ainda estava muito nervosa, abalada, trêmula, falando sem parar com a equipe. Particularmente, Ella gostaria que ela não estivesse ali. Não devia estar apresentável de forma nenhuma; sentia que estava babada, suada, confusa, e uma convulsão nunca seria agradável de ser presenciada. Sabia que tinha sido uma convulsão. De alguma maneira, aquela sensação era algo que conhecia. Era como se já tivesse ouvido alguém explicando e reconhecia a sensação de quando passava. Era uma calmaria confusa e dolorosa.
— A paciente acordou!
E Carter correu para sua cama imediatamente.
— Ella!
— Senhora Schafer, só um minuto, só um minuto! — A terapeuta pediu para Carter — Precisamos entender o que a paciente está sentindo.
Desespero, medo, terror? Ella podia enumerar, se tivessem tempo! Mas desconfiava estarem se referindo ao que estava sentindo fisicamente e se esforçou para deixar claro o que era.
— Dor de cabeça, intensa? — Afirmou: era muito intensa — OK, vamos cuidar disso e... — Parou. Ella estava gesticulando, pedindo algo em específico — Sua esposa...? Você quer que a gente dê algo para sua esposa também? — Era isso — Pode deixar, vamos cuidar dela também, só um instante.
Carter chorou mais. Não queria chorar mais. Queria ficar forte, queria que Ella se sentisse segura. Mas como era possível, se isso sempre havia sido ao contrário? Se era Ella quem lhe deixava segura? Ainda que tivesse acabado de passar por um coma longo, um trauma, uma convulsão, aquela garota voltava a si e tinha Carter como prioridade.
Foi para o fundo do quarto e se virou de costas, encostando a testa na parede, tentando chorar escondido, mas não funcionou muito bem.
— Senhora Schafer? Tudo bem, tudo bem.
A terapeuta foi buscá-la no fundo do quarto, trazendo-a de volta, colocando-a sentada na poltrona enquanto a cama de Ella era trocada rapidamente, com ela sendo movida o mínimo possível. Ficou claro que aquilo era algo que a equipe comumente fazia. Por tipo, uns cinco anos. As duas foram medicadas e Ella só queria que a dor de cabeça sumisse. Não queria apagar de novo, mas viu Carter começando a se encolher no sofá. O choro finalmente se acalmando, os olhos ficando mais pesados, e elas se olhando e se desculpando: Ella por convulsionar, e Carter por não...
Impedir. Não a convulsão, mas que Ella saltasse daquele barco.
Aquilo era real mesmo?
A equipe colocou Ella de volta aos aparelhos. Queria pedir um banho, precisava de um banho, mas não sentia forças para fazer mais nada. Sentia que, se tomasse um banho, poderia se sentir muito melhor. Havia aprendido com Carter que água era a partícula da vida e nada podia dar muito errado se você mergulhasse em partículas vitais. Alguém quis levar sua esposa para outro lugar, mas Ella não permitiu. Só queria... se acalmar, se recuperar daquilo tudo, e queria fazer isso olhando para sua esposa.
— OK, apenas siga a caneta com os olhos, por favor — O médico pediu, movendo uma caneta de um lado a outro, que Ella seguiu — Quem é mais velha, você ou a senhora Schafer? — Apontou para Carter, e Ella estava achando particularmente adorável que todo mundo chamasse sua esposa de “senhora Schafer” — Perfeito. Esta mão é sim, e esta é não: tem uma laranjeira no quarto? — Indicou que sim — Tudo bem, você deve dormir um pouco. Vamos manter alguém por perto. Se precisar de algo, acione o botão. Descanse. Foram muitos estímulos. Você precisa ir mais devagar.
Ella concordou. Carter tinha realmente dormido, mas não queria ter dormido. Ainda que tivessem apagado as luzes e dito que ela dormiria, não queria. Queria se recuperar acordada. Já tinha dormido por cinco anos; como eles achavam que ela poderia simplesmente dormir agora, sem medo de acontecer de novo, sem medo de ter um troço de novo? Hum… Não havia sido um troço, havia sido um coma.
Pensou nisso e seus olhos se encheram. Como podia não lembrar de nada? Lembrava do seu casamento, de como havia sido lindo. Lembrava do Coachella, do show da Billie Eilish e do Tame Impala, uma das suas bandas preferidas. Mas haviam ido ali para ver a Billie especificamente, um dos atos menores. Será que ela havia ficado mais famosa? Era só uma adolescente antes e tinha tanto potencial.
Lembrava também que Carter estava doente. Havia passado uma semana em Xangai, a negócios, e quando voltou, trouxe uma virose persistente, que seguiu ambas até o casamento. Deus, por que não lembrava de mais nada depois? Por que estava tendo convulsões? Fechou os olhos e viu duas mulheres que não conhecia, viu... laranjeiras. Limão-siciliano por todos os lados. Uma discussão cruzou sua mente, mas não fazia sentido. Carter e Ella nunca brigavam, só brigavam quando...
Eu devo ter bebido demais. Por que bebi demais na minha lua de mel?
Devia mesmo ter passado do ponto. Quando era apenas um pouco, Carter não se importava, mas quando era demais, elas brigavam. Ella tinha um problema com álcool quando se conheceram. Sabia que bebia muito, mas não sabia o motivo. Não cavou na terapia para descobrir. Apenas ficou feliz quando notou que estava bebendo cada vez menos.
Lembrava de um hotel. Era o hotel delas, mas não sabia se era uma memória real ou se era apenas porque havia visto fotos e vídeos do lugar. Havia sido escolha sua e, enquanto tentava descobrir se era uma memória real ou não, sua cabeça voltou a doer, e Ella decidiu duas coisas:
Coisa um, olhar fixamente para sua esposa dormindo, algo que sempre lhe encheu de calma; e coisa dois, focar em memórias que conhecia muito bem. E foi assim que, durante aquela uma hora pós-crise, Ella relembrou seu mês inteiro no Rio de Janeiro, aquele em que foi atrás de uma herdeira esnobe e encontrou o amor da sua vida.
Se pudesse falar, isso provaria que sua mente estava saudável? Poder lembrar com precisão que sua esposa usava um biquíni preto com um jeans curtinho muito surrado e lembrar exatamente o aroma do perfume dela misturado com o sal que secou na pele na primeira vez que se abraçaram? Carter usava La Vie Est Belle, da Lancôme, e nunca mudou. Ella também lembrava do detalhe de ter tirado um determinado anel do dedo assim que desceu do carro para abraçá-la, o que provava, de alguma forma, o quanto havia sido mal-intencionada desde o começo. Ou, talvez, só comprovava que sempre soube o que elas seriam desde o minuto um, e nada poderia parar o que estava para acontecer: um tipo de paixão que muda uma vida, muda duas, muda tudo.
Ella fechou os olhos e se concentrou na respiração. Se tivessem tomado o mesmo, só havia surtido efeito em uma delas, e isso era bem comum de acontecer. Carter havia sido criada por uma mãe que evitava remédios industrializados, exceto quando muito necessário. Não era uma negacionista, longe disso, só queria que a filha tivesse um sistema imunológico naturalmente forte. Era comum que, quando sua esposa tivesse alguma dor, buscasse um chá de alguma erva exótica. Para nariz entupido? Chá de eucalipto. Para prisão de ventre? Babosa. Para dor de cabeça? Hortelã. Além disso, Carter tinha alergia a alguns medicamentos. Ella lembrava como ela podia dormir com um simples relaxante muscular.
Não, minha cabeça está bem, está funcional. Eu lembro de tudo isso. Não devo ter nada mais grave.
Bem, como não havia dormido, decidiu se sentar um pouco, mas aquilo era muito custoso. Mover os braços era difícil; cada movimento era uma luta mental intensa. E, apesar de ter quase certeza de que sua mente estava bem, seu corpo não parecia conectado ao cérebro. Coisas simples, como tentar se apoiar para se sentar, eram trabalhosas, difíceis de executar. Alcançou o celular de Carter ao lado da cama, mas se sentar estava praticamente impossível.
Por Deus, realmente aconteceu? Realmente dormi por cinco anos?
Seus olhos se encheram novamente porque, agora que estava prestando atenção nas coisas com mais afinco, estava muito claro que isso tinha mesmo acontecido. Sua mãe estava diferente, parecia mais velha. E Carter também estava diferente. Os cabelos dela estavam mais curtos do que lembrava. Ela estava bem menos bronzeada e parecia... mais frágil. Fisicamente, mais frágil. Seus braços, sempre firmes, não estavam mais tão definidos assim. E, quando buscou o abdômen gostoso para colocar a mão quando dormiram juntinhas, notou que ele também estava diferente.
Mas até então podia ter dormido por uns meses. Essas coisas todas mudam em alguns meses, não é?
Já sabia que não tinha sido algo muito rápido quando acordou e se percebeu tão sem forças, mas apostou em algumas semanas apenas. Lembrava de ter olhado ao redor e, quando não reconheceu onde estava, tentou descer. Sua cabeça, porém, estava doendo demais, e acabou se virando, contando com o próprio corpo, como uma pessoa normal. Mas tudo falhou: braços, pernas, mãos.
Deus, realmente só consigo lembrar até o aeroporto, é a minha última lembrança. Por isso, pensei que a gente tinha perdido o voo. Mas quando Carter disse que não, só podia ter sido algo na lua de mel. Então, passei a acreditar que tinha sido apenas há algumas semanas, no máximo, há alguns meses. Mas cinco anos...
Lagrimou e começou a ficar nervosa de novo, mas não podia. Não podia ficar nervosa, ou iriam querer esconder mais informações sobre seu estado. Então, tentou se acalmar, controlar a respiração, relaxar olhando para sua esposa, mas... não conseguiu.
Havia deixado Carter por cinco anos. Havia deixado sua família por cinco anos. Como as coisas deveriam estar?
Sua mãe e irmã eram sua responsabilidade. E Grace? Será que havia entrado em transição? Esse assunto era tão delicado. Ella sempre a apoiou tanto para descobrir quem ela realmente era. O mundo era cruel para quase todo mundo, e era ainda mais cruel para determinadas pessoas. Só queria que Grace se sentisse segura para crescer na sua própria verdade e agora só...
Tentou esconder o rosto porque alguém havia entrado no quarto.
Uma garota bonita, com o uniforme esverdeado do hospital, os cabelos claros presos num rabo de cavalo e tênis nos pés.
— Oi! É... meu nome é Sky, sou sua fisioterapeuta. Notei que está tentando se sentar, certo? — Ella afirmou, era isso mesmo — OK, posso te ajudar nisso. Você gostaria de sair da cama? Posso trazer uma cadeira de rodas — Daí, Sky deu uma olhadinha para a poltrona — A Carter apagou mesmo, não foi?
Ella respirou fundo e pegou o celular de Carter, que seguia em seu colo. Olhou a data outra vez. Um frio percorreu seu corpo. Aquilo era surreal. Não tinha como estar acontecendo. Entrou com a senha, mesmo com os dedos trêmulos, e abriu o bloco de notas. Escorregou os dedos pelas letras e conseguiu escrever:
“O que deram para ela?”
— Um calmante. Ela está sentindo muitas coisas ao mesmo tempo. É bom que ela durma um pouco depois que... vocês conversaram. Hum, você quer mesmo sair da cama? Você tomou um calmante também.
Ella pensou um pouco, afirmou, queria. Daí, Sky saiu e retornou uns minutos depois. Ella já tinha escrito outra coisa e mostrou para ela:
“Vocês são amigas?” Porque ela estava chamando sua esposa pelo apelido enquanto todo mundo a chamava de senhora Schafer!
Sky sorriu. Ella Schafer acordada era mesmo a coisa mais linda, e parecia ciumenta.
— Sim, mas faz pouco tempo. Sou sua fisio há um ano só e quando a Carter me contratou, estava... num momento muito difícil. Ela não tem muitas amigas aqui — Sky se aproximou — Posso fazer alguns testes? Quero perceber a sua força, tudo bem?
Como assim, Carter não tinha muitas amigas? Ella tinha se casado com a Miss Simpatia, que fazia amigos em qualquer lugar. O que havia acontecido para que ela...? Hum... Um coma. De cinco anos. Da esposa com quem Carter havia acabado de se casar. Ella respirou fundo e concordou com os testes; Sky queria examinar algumas coisas antes de movê-la da cama. Força, resistência, tônus muscular, o que ela conseguia ou não fazer. Conseguia abrir os dedos, fechar, estava conseguindo escrever, apesar de a caligrafia estar horrorosa. Conseguia erguer os braços, mas não muito, e tinha força o suficiente para se segurar, mas não para ficar de pé. Perguntou para a fisio o motivo.
— Você perdeu massa magra nesse processo todo, perdeu músculos. Sem músculos, você não fica de pé. Mas essa é a única causa, não há lesão permanente.
Esforçou para escrever novamente e mostrou para ela.
— Então, as convulsões devem ser em virtude do trauma na cabeça. Você... você teve a primeira durante o seu resgate.
Ella engoliu em seco. Escreveu de novo:
“Carter viu?”
— Ela... Foi a Carter quem te resgatou.
O coração de Ella se apertou inteiro. Qual o tamanho dos traumas que havia causado nela? E, ao mesmo tempo, o que mais esperava de Carter? É claro que ela a havia resgatado, é claro que havia sido a primeira a lhe alcançar. Tentou se conter, respirou fundo. Que nunca tivesse aquela lembrança. Aquela não queria de volta nunca.
— OK, vou te colocar na cadeira, tudo bem?
E aquilo assustou Ella um pouquinho. Aquela moça delicada ia colocá-la na cadeira sozinha...? Sim, era isso mesmo. Sky a tirou da cama sem dificuldades e a colocou na cadeira de rodas. Quanto estou pesando, pelo amor de Deus...?! Perguntou isso para ela.
— É... pouco. Você é baixa também — Ella escreveu, “1,61”, meio ofendida por ter sido chamada de baixa. Sky riu — Você vai recuperar o seu corpo, só precisa ter paciência com você agora. Olha, virão te buscar para mais exames daqui a pouco e... — Ela escreveu naquele celular de novo. Sky havia entrado ali para um: acalmar Ella. E dois: tirar aquele celular das mãos dela. A equipe havia saído quando ela se acalmou, apostando que ela dormiria, mas não havia acontecido assim, e Sky não sabia o quão perto ela estava de ver algo que seria muito, mas muito danoso naquele celular.
“Vocês se conheceram aqui no hospital?” Era a pergunta que ela estava escrevendo.
— Carter e eu? Sim e não — Sky se abaixou à frente dela e continuou seus testes de sensibilidade pelo corpo dela — Eu já estava trabalhando aqui, mas não com você. E um dia, quando já estava indo pra casa, vi uma moça desmaiar no estacionamento.
Os olhos de Ella se abriram mais, as sobrancelhas franzindo. Ela era muito expressiva
— Você não deve saber, pelo que entendi, foi algo que ficou mais grave depois do seu acidente, mas a Carter tem endometriose e estava tendo uma crise tão grande que acabou apagando. Mais daquele rosto expressivo, mas agora ficando preocupado, os olhos clarinhos ficando cheios — Achei que ela estivesse aqui no hospital para pedir ajuda pra ela mesma, mas não. Ela só estava aqui para ver você e acabou sendo derrubada por uma crise de uma dor da qual ela não estava cuidando.
Ella escreveu novamente:
“Ela, teimosa.”
— Ela é teimosa — Sky respondeu sorrindo, passando uma caneta pelo corpo de Ella: braços, pernas, pés, causando pequenas pressões. Ela estava sentindo tudo.
“Mas, ela bem agora?”
Era uma pergunta muito complexa, porque envolvia uma situação muito complicada mesmo.
— Ela está cuidando, sim. Ali, a equipe está vindo. Vamos precisar deixar esse celular aqui, OK?
Ella disse que sim, tudo bem, mas escreveu mais alguma coisa:
“Você pode ficar aqui com ela?”
Elas eram cuidadosas uma com a outra.
— Sim, claro que sim, ela vai acordar logo, pode deixar.
A equipe realmente veio buscá-la para os exames e, finalmente, Sky conseguiu recuperar aquele celular, aparentemente, sem danos. Ficou no quarto, anotando os resultados dos testes que havia feito, simples, mas muito importantes. Ella não tinha nenhuma insensibilidade, nenhum sinal de lesão. O programa que estavam executando com ela, aparentemente, havia dado resultados. E então, quando terminou suas anotações, lentamente, Carter foi acordando. E ficou imediatamente assustada.
— Sky? Cadê a Ella?!
— Calma, está tudo bem. Ela está fazendo alguns exames e estava com seu celular — Entregou o iPhone para Carter.
— Ela...?
— Sabe a senha. É a mesma senha...?
— Sim, é a mesma senha de sempre — Carter se sentou, ainda um pouco zonza.
— E ela não esqueceu?
— Aparentemente, ela lembra de tudo antes do voo que levou nós duas para a Itália.
— Carter, e se ela encontrasse o que não deve no seu celular?
— Ela não vai encontrar nada, porque vivo como uma mulher com amante, Sky. As minhas conversas com a Raina são trancadas, não temos fotos juntas no meu celular, nem nas minhas redes sociais, em lugar nenhum, da mesma forma que a Raina não consegue encontrar as minhas conversas sobre a Ella neste mesmo celular. Eu sou uma canalha, uma puta egoísta que não merece nenhuma das duas — Disse, e seus olhos se encheram de novo.
— Ei! Quer pegar leve com você?
Carter abraçou os joelhos e tentou se acalmar.
— Como ela está?
— A Ella?
— Sim, eu... me descontrolei muito. Devia ter apoiado a minha esposa e acabei desabando.
— Ela está bem. Chorou um pouquinho, mas não dormiu com a medicação. Lutou acordada para reduzir a dor de cabeça. A Ella não está bem, mas está. Está lutando para ficar bem, para compreender o que aconteceu. Ela está com boas respostas musculares e cognitivas. Escreve, faz perguntas conscientes, coesas. Parece que dormiu ontem e acordou hoje.
Carter chorou mais um pouquinho, mas abriu um sorriso.
— Eu disse que ela é incrível. Sky, ela... teve uma crise convulsiva?
— Teve. Eu já te expliquei, não é? Traumas na cabeça causam isso. Ela teve uma quando você a reanimou, não teve?
— Teve — Era a pior cena que Carter tinha na mente. Mais assustador do que o sangue surgindo na água, havia sido encontrá-la, colocá-la no barco de novo e, quando a reanimou, sua esposa convulsionou violentamente. Ella havia aberto os olhos, cuspido água, ao menos por alguns segundos, e então convulsionou e não acordou mais — Ela se desesperou quando viu a data, Sky. Fiquei em pânico de ela desmaiar, de algo ruim voltar a acontecer, então veio a convulsão e só... me colocou naquele barco de novo, que, mesmo em alta velocidade, não parecia nunca chegar ao porto. Eu me descontrolei muito, não devia ter deixado isso acontecer.
— Carter, Carter: você é humana, está bem? Isso traumatizou você também. Tudo isso é normal. Escuta, posso te dar um conselho? Vai pra casa, toma um banho, come direitinho, responde às mensagens que estão lotando o seu celular. Vi que tem muitas mensagens chegando. Você precisa de um plano. No final da tarde, vamos apresentar o cronograma da Ella para os próximos 30 dias. Você sabe que isso apenas começou, não sabe? Ela não vai sair daqui amanhã. Nem no próximo mês. Você não vai poder estar com ela aqui o tempo todo. Tem a empresa, tem a sua vida. Se ela está cognitivamente bem — e temos quase certeza de que está —, ela tomará conhecimento disso. Vocês terão que conversar. E você vai ter que conversar com a Raina também. Carter, por favor, faça um exame de gravidez. Descubra tudo de uma vez. Te medicaram hoje. Se você estiver mesmo grávida, isso pode ser perigoso.
Carter respirou muito fundo. E sabia que ela tinha razão sobre tudo. Bem, se colocou de pé, lavou o rosto mais uma vez e, quando ia arrumando suas coisas para ir pra casa...
— Nós não sabemos como lidar com ela, senhora Arnault — A terapeuta que era a líder da equipe decretou, fazendo Carter rir um pouco.
— Ela está sendo teimosa...?
— Fazendo muitas perguntas. Achei que tínhamos um plano, mas ele definitivamente era para uma paciente passiva, que acordaria confusa ou até mesmo sem consciência ativa. Ela se recusa a fazer alguns exames antes que a gente diga para que servem e...
— O quê?
— Quer uma reunião. Ela escreveu “REUNIÃO”, tudo em maiúsculo, e quer que a gente explique todos os exames. Quer um relatório sobre o real estado dela.
Carter riu de novo.
— Ela convocou uma reunião...?
— Aham, e foi tão incisiva que eu disse que sim! O pior é que não temos pra quem perguntar muitas coisas. Ninguém acordou intacta assim depois de tanto tempo. Um especialista australiano me disse agora que o caso dela é como casos de remissão espontânea de pacientes com câncer grave. Algo que só acontece, sem muitas explicações. Mas, apesar desse estado aparentemente bom, ela está confusa. Está assustada. E queria que você a convencesse a ir mais devagar. Falei com a mãe dela. Ela disse que, se alguém pode convencer Ella de algo, esse alguém é você. Hum... Ela está exigindo você também. Pediu para tomar banho, mas quer você.
Se alguém iria dar banho na sua esposa, obviamente seria Carter.
Cancelou sua ida pra casa e ficou esperando por Ella. E, nisso, esqueceu de desmarcar com Raina, que apareceu para levá-la para almoçar e não veio sozinha.
Sahara correu e abraçou Carter, muito forte, muito emocionada.
— Eu não consegui vir antes. Alguém tinha que trabalhar — Ela disse, ácida e chorando, uma graça.
— Você é a que sempre trabalha.
— SIM, sempre eu! Carter, onde ela está? Posso vê-la?
— Claro que pode, ela já está voltando dos exames — Daí, beijou Raina no rosto rapidinho — Foi tudo bem nas reuniões?
— Ninguém focou nas reuniões hoje de jeito nenhum! Todo mundo só falava sobre a Ella, queriam informações, saber se ela acordou bem. As reuniões foram bem mais suaves hoje. Os acionistas estão INCRÉDULOS. Você tinha que ver a cara deles hoje! — E, enquanto contava isso, Raina viu Ella se aproximando pelo corredor, agora fora de uma maca, tranquilamente sentada em uma cadeira de rodas — Ela... está sentada.
Estava. E brilhou os olhos assim que viu Sahara.
Foi um encontro lindo. Sahara apenas correu na direção dela e se ajoelhou na frente da cadeira, ficando da altura de sua amiga, para poderem se abraçar. Sahara chorava muito, Ella com os olhos brilhando, o sorriso aberto. Elas eram melhores amigas desde pequenas; era uma relação diferente a que existia entre as duas. E Carter sentiu que precisava interferir naquela emoção toda, só um pouquinho. Pediu um segundo para Raina e foi até elas, explicar que Ella não estava falando e que não estava tão forte também.
— Ah, sim, sim! Desculpe o abraço longo!
— Ela não pode falar e, por favor, não coloque um celular com internet nas mãos dela. Ela não pode ficar sobrecarregada de informações, e sei que é isso que ela quer — Carter olhou para Ella, que fez beicinho, a coisa mais linda. Carter nem sabia. Ela parecia ótima mesmo depois da convulsão — Você não pode ficar sobrecarregada, seja boazinha, hum? Vou te deixar com a Sahara um pouco, já venho, OK? — Ela concordou, podia ser assim. E daí, Carter falou só com Sahara, enquanto a equipe seguia com Ella para o quarto — Sahara, não responda nada que ela perguntar que envolva: tempo, a empresa, família…
— A Raina.
— POR FAVOR!
— OK, claro que eu não ia mencionar isso. Meu Deus, Carter, a Ella realmente acordou!
Ainda não parecia real. MESMO.
Bem, Ella entrou para o quarto e Sahara foi até ela, só cinco minutos. Ela não podia se cansar, a terapeuta informou, e Carter foi falar com Raina rapidinho, fora da vidraça daquele quarto.
— Eu não vou conseguir almoçar, devia ter te ligado, mas as coisas foram bem intensas hoje de manhã.
— Não tem problema. A Sahara queria vir aqui e te trouxe almoço, imaginando que você não iria mesmo. Vamos almoçar juntas depois que ela sair. Carter, você acha que... a Ella lembra de mim?
— Acho que... é possível que ela lembre. Você entrou no último processo seletivo antes do nosso casamento. Ela fez a sua entrevista final, não foi?
— Sim, e essa foi a única vez que nos falamos. Ela olhou direto pra mim agora. Eu saí, entrei no corredor, mas ela... me olhou.
— Você ficou desconfortável?
Raina respirou fundo.
— Um pouco. Ela me olhou ontem à noite também, Carter.
— Você acha...?
— Tenho certeza. Por isso me afastei. Escuta, eu vou esperar a Sahara na recepção, você avisa pra ela?
— Sim, claro que sim.
— E, quando você estiver pronta para ir pra casa, me manda mensagem. Se cuida. Não esqueça de se alimentar. Você está bem?
Carter achava que estava, ao menos. Cinco minutinhos e Sahara foi expulsa do quarto, com a terapeuta dizendo que precisariam organizar essas visitas. Parecia mesmo que estavam todos desorganizados, mas devia ser porque se tratava da esposa de uma das acionistas daquele hospital, e estavam meio atrapalhados mesmo. Quando Carter voltou para dentro do quarto, Ella já estava com algo escrito na lousa: “Almoce primeiro”. Isso a fez sorrir.
— Você promete que vai ficar relaxada? — Ella afirmou, prometia e, então, apontou uma sacola ao lado — A Sahara que trouxe mesmo? — Isso, tinha sido ela — Vou comer lá fora e já venho.
Não. Ella negou. Carter podia comer no quarto. Se não podia comer, podia ao menos sentir o cheiro de alguma comida. Ela havia perguntado por que não podia comer, e haviam explicado que ela podia se engasgar como um bebezinho, que os seus músculos estavam todos fragilizados, incluindo os músculos de sua laringe, o que explicava estar sendo tão difícil falar. Tinha tantas perguntas.
Quantas perguntas terei que fazer para ficar a par de todos os cinco anos que fiquei dormindo?
Na recepção, Raina estava esperando. Havia pegado um café para si, mas não havia conseguido tomar. Estava enjoada por algum motivo, não havia conseguido tomar café da manhã e estava prevendo que almoçar seria um problema também. Então, sentou-se e deixou o café de lado, apoiando os cotovelos nas coxas e baixando o rosto nas mãos, apenas respirando fundo, tirando alguns segundos apenas para isso.
— Você precisa de alguma coisa? — Uma voz perguntou de repente.
Raina ergueu o rosto e abriu um sorriso. Ela sempre sorria, não importava o tamanho do problema. Seu sorriso era sua marca registrada.
— Não, só... estou respirando um pouco. As coisas estão bem corridas na empresa esses dias. E você, tudo bem?
Sky sentou-se ao lado dela.
— Tudo bem. Você sabe que os indicadores do meu trabalho estão todos ligados à melhora dos meus pacientes, e noite passada tivemos um coma longuíssimo que apenas se desfez — Comentou, sorrindo.
Raina sorriu também.
— Isso é impressionante, não é?
— É, até para a parte otimista da equipe, no caso, apenas eu. Pelo estado clínico da Ella, eu apostava que ela pudesse mesmo acordar. Os sistemas dela funcionavam todos bem bonitinhos, sabe? Eu acreditava, mas não era esperado que isso acontecesse. Você... esperava por isso ou não?
— Sinceramente? Não — Recostou-se na cadeira, movendo o pescoço de um lado a outro — Todo mundo dizia ser muito impossível, mas sabe de uma coisa? Mesmo desacordada, a Ella sempre esteve presente. E isso não é culpa de ninguém. Quando começamos a passar mais tempo juntas, a Carter sempre deixou claro como tudo seria: tinha uma enorme parte dela que já estava ocupada, uma parte inegociável, que não estava disponível. E eu entendia bem, porque vivi dez anos da minha vida assim também. Você sabe que...?
— Você perdeu uma namorada.
— Perdi. Então, eu entendia a Carter. Ela não queria namorar, não queria que as coisas ficassem sérias, mas eu quis deixar as coisas mais sérias mesmo assim. Gosto dela pra caramba. E não, não faço a linha “posso amar por nós duas”, nunca quis isso e nunca foi assim. Temos uma relação equilibrada, a gente se respeita, se cuida, tem muito carinho. Mas sei que isso desequilibrou essa noite — Contou, apertando os lábios por um instante — Nós... não dormimos no quarto principal do apartamento.
— Vocês...?
— Dormimos no quarto de hóspedes, que é ótimo também, mas isso é bem ilustrativo, não acha? É como se a Ella estivesse dormindo lá esse tempo todo. Mas agora ela acordou.
Houve um pequeno silêncio.
— E no que você está pensando agora? — Sky perguntou.
— Eu... não sei. A Carter é minha melhor amiga e eu a quero bem, a quero feliz. Mas estamos juntas, e ela pode estar grávida. Você sabe que isso foi um plano dela. Quando descobriu que provavelmente teria de operar por causa da endometriose, ela quis tentar engravidar antes, mesmo com as probabilidades sendo tão baixas. Não foi minha ideia, mas me apeguei a isso. Não sei se vou estar pronta para abrir mão se ela estiver mesmo grávida.
— Mas, se ela não estiver, você estaria pronta?
Raina pensou um pouco mais.
— Eu não sei. Não quero ser uma covarde e declarar derrota com a Ella acordada há menos de 24 horas, mas... elas se olham igual.
— Como?
— Quando conheci a Ella e a Carter, elas se olhavam de uma forma muito particular. Ninguém tinha que dizer que eram um casal; o olhar apegado deixava isso muito claro. E eu vi a Carter muito pouco. Quem cuidava mesmo da empresa era a Ella; Carter estava... cuidando do apartamento, do casamento, vendo flores, vestidos, arrumando as malas para a lua de mel. Eu não fazia ideia de que existia uma executiva tão talentosa dentro dela. Me apaixonei por ela na pandemia, provavelmente, quando ela lutou tanto pela nossa sobrevivência. Até de maneira literal: a vacina da Arnault & Schafer foi a primeira vacina canadense contra a COVID-19. Ela estava sofrendo, a esposa em coma, a empresa desabando, os hospitais lotados e ela trabalhando dezesseis horas por dia. Chorava nos banheiros, mas na frente de todo mundo, estava inteira. Eu me apaixonei por ela mesmo e a admiro pra caramba.
— E vocês nunca conversaram sobre o que fariam caso a Ella acordasse...?
Raina a olhou.
— Eu sempre soube o que aconteceria se ela acordasse, Sky. É... já comentei que sou transplantada?
— Você é transplantada?!
— Aham. Recebi um coração novo quando tinha dez anos. Mas, para eu ter esse coração, uma criança precisava morrer. Não tem outra maneira. E, sendo assim, não sabia o que sentir. Eu queria um coração, claro, mas não queria que nenhuma criança morresse. Era um conflito de interesses. E sou libriana ainda por cima. Então, sempre quis que a Ella acordasse, mas não queria perder a Carter. É o mesmo caso de quando eu esperava por um coração com dez anos. E sabe quem resolveu? Não fui eu — Disse, fazendo Sky rir um pouco, e riu com ela também.
— Você não matou criança nenhuma por um coração.
— Não matei.
— E nem veio aqui desligar os aparelhos da Ella.
— Também não, e tive várias oportunidades! Acho que... tudo vai se ajustar da melhor maneira.
— Acho também. Cadê seu celular?
— Meu celular? Aqui — Raina tirou o celular de dentro da bolsa e, tal como Carter, sua lockscreen era apenas uma floresta qualquer — Quer desbloqueado?
— Isso, por favor.
Desbloqueou e entregou para Sky.
— Mas... tão fácil assim? Nem me perguntou pra que quero — Disse, sorrindo.
— Não tem segredos aí.
Sky digitou algo e devolveu para ela.
— Coloquei meu número. Se você precisar conversar a qualquer momento, basta me ligar ou me escrever, OK?
Raina sorriu.
— OK. Obrigada por isso, de verdade.
Sky se despediu de Raina e caminhou ao encontro de Sahara, que estava vindo. A abraçou, fazendo-a rir, porque ela já sabia o que viria:
— Muito obrigada por ter criado a nossa vacina! Isso salvou milhões de vidas.
Sahara havia liderado o time da vacina, e Sky sempre a agradecia por isso. Sempre!
— Agradeço o seu reconhecimento! Vem cá, você já almoçou, sua linda? Vamos almoçar juntas, nós três. A gente raramente tem esse tempo.
Era verdade. E o despertar de Ella Schafer só mostrava o quanto o tempo era mesmo precioso.
Notas da Autora sobre Água Rasa: Tessa Reis
Olá, todo mundo!
Chegamos ao capítulo 5 de Água Rasa, de volta ao presente, onde Ella teve que enfrentar a realidade de ter dormido por tanto tempo. Agora, ela tem noção do tempo, mas está bem longe de conseguir compreender tudo o que se passou em cinco anos e todas as coisas que mudaram. Falando em mudanças, deu para conhecer um pouquinho da Raina no final do capítulo. O que acharam dela?
No próximo capítulo, “Cold Plunging”, é hora de nos aprofundarmos em águas geladas. hahaha.
Voltamos dia 2/2!
Grande beijo,
Tessa.
Caramba, que capitulo intenso... e a Tessa nos coloca sentindo tudo o que cada uma das pessoas sentiram nesse acordar....incrível! 😊