Água Rasa 6
- Riesa Editora
- 2 de fev.
- 20 min de leitura
Atualizado: 12 de fev.

Cold Plunging
Ella ficou observando Carter comer, e Carter ficou a observando também, apenas observando. O silêncio era confortável, se olharem era acalentador depois de tudo o que havia acontecido. Elas se conheciam muito bem e estavam calmas de novo. Daí, escreveu, dessa vez com mais dificuldade. Suas mãos ainda estavam muito trêmulas, seu corpo continuava meio hesitante, difícil de corresponder às suas ordens. Mas conseguiu escrever, mesmo faltando letras e de maneira reduzida. Mostrou para Carter:
"Desculpe convulsão."
Carter sorriu.
— Desculpe pelo descontrole. A gente não pode mais ter emoções fortes assim, temos que ir devagar, você entende?
Ella respirou fundo. Infelizmente, estava entendendo.
— Você ficou nervosa, deve estar com a mente cheia agora, pensando em mil coisas diferentes, quando, na verdade, precisa apenas focar na sua recuperação, linda. Sei que você tem muitas perguntas, você sempre teve, é da sua personalidade. Seu MBTI é INTP, seu pensamento é lógico, você é curiosa por natureza, mas vamos ter que ir devagar agora que você tem que se recuperar. Sei que pediu uma reunião com a terapeuta, e é seu direito saber do seu estado, claro que é, mas as outras coisas... teremos que ir devagar, tudo bem? Ao menos até você ficar um pouco mais forte, mental e fisicamente. Eu te contei do acidente, acho que era o que você mais precisava saber e...
Ella estava escrevendo. Lutou para formar a frase e mostrou:
"Vc machucou quando mergulhou atrás de mim?"
Carter sorriu novamente. Ela estava preocupada.
— Quem contou essa parte pra você?
Ella apontou para o alto. Carter riu de novo, agora da referência.
— A Sky! Vocês já se conheceram, então? Saltei do barco, mas de pé. Quebrei dois dedos, mas nada grave. Foi impulsivo. Ella, é... A gente pode não falar mais do acidente, ao menos por enquanto?
Ella concordou. Podiam sim. Aquele assunto era claramente delicado para sua esposa, mas ficou visivelmente triste por não poder perguntar mais nada, e claro que Carter notou.
— Mmm... — A salada que Sahara havia trazido estava deliciosa — Me pergunta algo aleatório, que não vá nos afetar emocionalmente.
Ella ficou animada novamente e pensou um pouco, daí escreveu:
"Billie está famosa?"
Era a pergunta, e Carter riu assim que leu.
— Ela está MUITO FAMOSA, você não faz ideia! Lançou um álbum este ano que ficou em primeiro lugar em todas as plataformas de música. Ah, ela assumiu a bissexualidade também.
Um sorriso enorme surgiu naquele rosto lindo, como quem diz: "eu sabia!". E Carter lembrou de outra coisa, uma bem particular, algo que até parecia que era para ser.
— Ella, a Billie vai estar no Coachella daqui a pouco, mas como ato principal.
E aqueles olhinhos claros ficaram animados.
"Hoje?" Ela escreveu.
— Hoje! Hum, tive uma ideia, que não vai fazer mal — Não, não tinha como fazer mal, e ninguém impediria Carter de passar mais um tempinho com sua esposa. Nunca impediram antes, não impediriam agora — Escuta, eu vou em casa buscar algumas coisas pra gente, sua mãe está voltando agora e...
Ella estava escrevendo:
"Grace não vem?"
— A Grace... já veio, linda — Carter terminou de comer e saiu da sua poltrona. Veio se sentar pertinho dela na cama — Veio hoje cedo, com a sua mãe, mas ela está diferente.
Ella pensou um pouco e se deu conta. Os olhos ficaram muito expressivos.
"Ela ñ fez transição?"
— Não fez. Ela se compreendeu melhor nesse tempo. É por isso que é tão importante seguir todos os passos, o cronograma todo. Transicionar é algo muito sério. Ela teve tempo e ajuda para compreender a si mesma. Uma coisa que ela disse depois de todo o processo, e após conhecer e conviver com mais pessoas trans, é que a maioria deles sempre teve a absoluta certeza de quem eram e do que queriam, e com ela não era assim. Grace tinha muito mais dúvidas do que certezas. Quando notamos, ela foi mudando o estilo um pouco, deixando o cabelo crescer. Mas nada é definitivo, ela muda sempre. Tem uma identidade de gênero própria, que se chama...
Ella estava escrevendo de novo. Mostrou.
Carter sorriu.
— Isso, gênero fluido. É o que ela é. Mas acho que sua irmã vai querer te contar tudo pessoalmente, com calma, quando você já estiver mais forte. Ela está muito parecida com você.
Mais daquele sorriso lindo quando ela ouviu isso.
Ella era tão bonita, Carter nem sabia.
Tocou o rosto de sua esposa, colocando uma mecha daquele cabelo para trás. O cabelo dela estava reto, sem cortes, e o supercílio que havia aberto... Só esperava que não ficasse marca. Nem sabia o quanto ela ficaria sensível com as outras cicatrizes, mas de jeito nenhum era assunto para agora.
— Vou esperar sua mãe chegar. Você não quer dormir um pouco, hum?
Ela concordou. Agora que estava mais calma e a dor havia passado, dormir pareceu uma boa ideia.
Quando Nia chegou, Ella já estava dormindo novamente. Veio com Grace, trouxe algumas das coisas que haviam pedido, mas...
— Acho que a maioria das coisas dela está no seu apartamento, Carter.
— Sim, é verdade. Eu cuido dessa lista, pode deixar.
— Você ainda retorna hoje ou...? — Nia perguntou, meio hesitante. Elas seguiam hesitantes sobre a postura de Carter, isso era claro, e não podia culpá-las quando ela própria estava hesitante sobre como deveria agir. Tudo ainda estava bagunçado, fora de ordem.
— Retorno, sim. A Ella marcou uma reunião com os médicos. Será no final da tarde.
— Mas...?
— É a sua filha. Você sabe como ela é — Carter respondeu, sorrindo — Bem, ela já sabe que ficou em coma por cinco anos. E foi bem intenso.
— Intenso o quanto?
— Ela ficou tão nervosa que acabou tendo uma convulsão.
— Uma convulsão?!
— É, foi intenso assim. Então, a equipe médica recomendou que a gente vá devagar com as informações. Ao menos até o momento em que ela estiver mais forte, com a mente menos confusa.
— Sim, sim, claro que sim. E como ela reagiu, Carter?
— Acho que a informação continua no campo das ideias para ela. Nem sei se ela realmente já está acreditando plenamente nisso. Deve estar buscando confirmações mentais, porque de forma nenhuma isso é algo que se espera que aconteça. Então, acho que cada informação nova pode causar uma nova reação. Vai ser individual. Aparentemente, as convulsões são algo que teremos que cuidar daqui pra frente. É uma consequência do acidente.
Os olhos das duas se encheram.
— Nós... nunca vimos uma convulsão, mas você já. É agressivo?
Os olhos de Carter se encheram um pouquinho também.
— Vou pedir para a equipe explicar como lidar com uma, caso aconteça. Não é algo grave se a gente sabe como ajudar. Bem, ela está esperando por vocês duas, bem ansiosa. Ficou feliz em saber que viriam. Pela manhã, a mente dela ainda estava confusa, mas agora está bem melhor — contou, sorrindo.
Elas ficaram bem empolgadas de ouvir essa parte.
E assim, Carter se despediu delas, pediu um Uber e foi pra casa. Não quis ligar para Raina, sabia que ela estava em reuniões importantes, e teria que voltar ao hospital de qualquer maneira. Mas foi sair e notar que estava frio. Devia estar abaixo de dez graus, o que, para uma carioca, era uma nevasca. Havia saído sem sequer um casaco, apenas ido direto. Havia pegado um gorro e uma jaqueta de Grace, mas ainda assim parecia insuficiente. Montreal era bem charmosa, mas Carter sentia muita falta de casa.
Chegou no seu prédio e entrou praticamente correndo, fugindo do frio. E, quando entrou na sua sala de estar, acabou rindo alto e sozinha.
Ella estava acordada. Estava bem, consciente. Ainda tinham um longo caminho pela frente, mas o principal já tinha acontecido. Respirou fundo, soltando o corpo na poltrona, fechando os olhos por um instante e jurando por tudo: seu apartamento até estava mais claro. As plantas estavam bonitas, a parede rústica parecia acalentadora, as paredes brancas e o piso de madeira luziam impecáveis.
Fez um chá bem quentinho e subiu até o terraço, mesmo estando frio. A vista era deslumbrante. Tinham espaço, um forno para pizza e churrasco, um jacuzzi que nunca havia sido ligado. Quando idealizaram aquela área, foi pensando em um lugar onde poderiam se exercitar quando não quisessem descer para a academia ou para a quadra de tennis e também para receber amigos, algo que Carter adorava e que Ella havia aprendido a amar também.
Daí, ficou emocionada de novo e acabou chorando um pouquinho. Sendo assim, sentiu que precisava de um reset. Entrou de volta, colocou um short e um top esportivo e voltou. Descobriu a jacuzzi e deixou a água enchendo, enquanto se alongava e corria de um lado a outro de roupão, fazendo seu sangue circular, tentando se manter aquecida. E, quando a jacuzzi estava cheio, parou no alto do deck, prendeu os cabelos num coque e respirou fundo.
Era algo que não fazia há uns cinco anos? Provavelmente, a última vez que havia feito cold plunging havia sido antes do seu casamento, e não sabia muito bem por que havia parado. Talvez tenha sido algo que perdeu com sua rotina de atleta. Costumava entrar em banheiras com gelo após um treino longo ou quando estava muito agitada mentalmente. O banho frio causava um certo alívio emocional e achava que, de maneira indireta, não se permitia nenhum tipo de alívio enquanto Ella estava em coma.
Bem, agora ela estava acordada, e Carter realmente merecia algum conforto emocional.
Então, respirou fundo e entrou na água fria, mesmo estando CONGELANTE, mesmo com seu corpo gritando que ela estava louca, que devia parar, que era melhor sair. Continuou ainda assim, entrando devagar, gemendo numa respiração ou outra, sentindo o frio se apossando da sua pele enquanto tremia um tanto quanto sem controle. O ar sumiu dos seus pulmões em determinado momento, mas, quando finalmente conseguiu se sentar no fundo da jacuzzi, a sua mente parou.
O mecanismo da banheira congelada era colocar o corpo num estado tão intenso de alerta físico a ponto de conseguir silenciar a mente. Está frio intenso, o corpo se desespera, mas, quando finalmente se consegue encontrar a respiração em meio àquela situação de estresse, algo quase mágico acontece: é como dizer para si que, apesar de todo o desconforto e do estresse, você consegue respirar em meio ao caos.
Então, Carter respirou.
De olhos fechados, soltando o corpo de maneira densa, depois de cinco anos, pôde tomar longas respirações e aliviar toda a sua intensa carga emocional.
Seu medo havia acabado.
Ella estava acordada, mentalmente bem. Tinham muito pela frente, mas aquele monstro chamado "possibilidade ruim" não existia mais. Isso, sim, era angústia.
Sua esposa podendo morrer subitamente, podendo ficar em coma por mais cinco anos. Ou mais dez, ou vinte, ou poder acordar, mas para um estado vegetativo. E achava que essa possibilidade era a que mais lhe assustava. Isso seria muito cruel. Carter nunca estaria pronta para enfrentar essa realidade, e era tão desesperador que nem sabia quantas noites havia acordado no meio da madrugada pensando nisso.
Mas agora essa possibilidade, e todas as outras anteriores, não existiam mais.
Respirou fundo novamente.
Olhos fechados, o frio apavorando suas células, o coração vibrando: é apenas água gelada, isso não pode te machucar.
Dizia o mesmo a si mesma sobre aquelas possibilidades todas quando ficava muito imersa e apavorada com cada uma delas: eram apenas possibilidades, elas não podiam lhe machucar.
Como podia aquela agonia toda ter realmente terminado?
Bem, ao menos aquela havia terminado.
O que faria se realmente estivesse grávida?
E se não tivesse?
Se afundou mais na jacuzzi, deixando a água fria cobrir o seu colo, o seu pescoço e, por fim, o seu rosto, silenciando todos os seus pensamentos.
Aguentou ficar dez minutinhos na água fria. Daí, saiu e correu pelo terraço, enquanto se vestia de volta no roupão, dando pequenos saltinhos para se aquecer. Então, desceu para terminar seu banho no chuveiro quente.
Tomou um banho longo, onde relaxou de verdade e cuidou de si mesma. Usou seus produtos preferidos, cuidou da pele, dos cabelos, sentindo aquele alívio do cold plunging sendo prolongado.
Colocou uma playlist para tocar e, depois do banho, foi dar uma olhada na lista de coisas que Ella precisava.
A maioria era roupas, produtos de higiene, mas Carter sabia que apenas essas coisas não a deixariam mais confortável, principalmente quando Ella descobrisse o tempo que ainda teria que ficar naquele hospital. Então, decidiu que faria uma mala para ela com essas coisas e mais algumas extras.
Vestiu uma calcinha boxer, um sutiã, toda de preto, colocou um roupão por cima e saiu do quarto de hóspedes, indo para o quarto principal, que, apesar de pouco usado, estava sempre arrumado.
Abriu o armário, pegou uma das malas caras de Ella Schafer e começou a arrumar.
Lingeries e roupas confortáveis, que ela amava usar.
Foi até o banheiro buscar os produtos que Ella mais gostava: o creme de pele, a skincare preferido, o shampoo e o condicionador que sua esposa preferia. Carter tinha tudo isso em casa. Comprava, tudo vencia, comprava de novo, porque sabia que Ella acordaria e iria querer todas aquelas coisinhas.
Parou.
Havia ido ao seu banheiro buscar uma esponja específica e acabou vendo os testes de gravidez na gaveta.
Haviam comprado naquela semana. Raina estava mesmo empolgada, mas Carter estava adiando aquele momento.
Respirou fundo mais uma vez, porque era realmente difícil.
Queria se sentir plenamente feliz por aquele dia, por estar fazendo aquelas coisas, mas parte sua não conseguia.
Ella ficaria louca quando soubesse sobre Raina.
E Raina não merecia estar no meio daquela bagunça.
Se sentia muito culpada por ela, e nem era só daquele dia.
E essa sensação também era bem ruim, porque a relação delas não havia sido construída daquela forma.
Raina também tinha uma marca, algo que acabou aproximando ambas.
Ela entendia o que era perder alguém tão repentinamente.
Havia perdido tragicamente a namorada da adolescência aos dezoito anos, também num acidente bobo, totalmente evitável.
Uma decisão ruim, que uma adolescente tomou, e uma vida interrompida cedo demais.
Elas namoravam desde os quinze, tinham planos de ir para a mesma faculdade, de morarem juntas.
E tudo isso também se desfez num golpe só.
Agora era justo que Carter continuasse agindo igual.
Ligou para ela. Tocou algumas vezes, mas logo Raina atendeu.
— Baby, tudo bem?
— Tudo, eu só... — Carter respirou fundo — Vim em casa buscar algumas coisas da Ella e estou me sentindo bem esquisita.
Um pequeno silêncio.
— Você pode esperar aí vinte minutinhos? Vou comprar café da tarde pra gente.
Podia, claro que podia. Ainda ficou de roupão, buscando coisas pelo quarto, encontrando o que precisava, e quando Raina chegou, lhe encontrou no quarto principal, arrumando uma mala sobre a cama.
Carter abriu um sorriso assim que a viu e caminhou até ela na porta. A beijou rapidinho, enroscando os braços pela cintura dela, recebendo aqueles braços pela sua cintura também.
— Tudo bem? — Perguntou para ela.
— Tudo bem, é só que... esse quarto está sempre fechado, até esqueço como ele é — Raina a virou nos seus braços, abraçando-a pelas costas, olhando o quarto um pouco mais. Era arejado, claro, tinha vista — Passei na cafeteria que você adora, trouxe café e uns pãezinhos pra gente.
— Você não estava ocupada?
— Deixei a Sahara trabalhando, ela está acostumada — Respondeu, sorrindo, beijando seu pescoço com carinho — Vamos até a cozinha?
Desceram para a cozinha para tomar um café rapidinho. Estava perto das quatro da tarde, Raina precisava voltar para o escritório e Carter tinha que ir para o hospital em breve. Serviram-se rapidamente e se sentaram ao balcão da cozinha. Carter provou seu pão com queijo e cruzou os olhos dela.
— Eu estava pensando na sua namorada mais cedo.
— Na Julie? — Raina abriu um sorriso — Eu também pensei nela hoje.
— O que você pensou?
— Hum, que, se ela do nada voltasse à vida, você teria que ser mãe solteira, Carter — Disse, sabendo que ela ia rir.
— Simples assim?!
— Não, claro que não tão simples — Tocou a mão dela com carinho — Mas eu realmente pensei no que faria se estivesse no seu lugar. E sei que tudo acabou de acontecer, mas sei também que estaria pensando sem conseguir parar. Na empresa, estão todos me olhando com uma interrogação de "o que acontece agora?" bem no meio da cara, e a verdade é que eu não faço ideia. Mas a sua esposa acordou e sei que essa é a coisa que você mais queria nesta vida. Eu não tive isso com a Julie, mas queria muito ter tido. Eu — Raina respirou fundo, olhando nos olhos dela — não quero abrir mão de você. Principalmente porque tenho quase certeza de que você está grávida mesmo e não sei como vamos resolver isso. Eu quero o meu bebê, Carter. Mas essa é a única coisa que eu sei. Sei que você continua muito mexida hoje, muito emocionada com tudo o que aconteceu. Quero ver os próximos dias, o quão diferente uma com a outra a gente pode ficar, o quão diferentes os nossos dias vão se tornar.
À parte disso, não quero que fique pensando muito nas coisas que você quer fazer. Sei que você quer ficar com a Ella o máximo possível e sei que ela precisa de você. Esteja lá, esteja com ela, vocês são casadas e — cruzou os olhos de Carter mais uma vez — sei que você não tem intenções de que isso mude.
— Raina...
— Você nunca mentiu pra mim, Carter.
— Me desculpe.
— Não se desculpe comigo — Pediu, desviando o olhar, tomando outro gole do seu café — Você vai voltar para o hospital?
— Sim, vim buscar algumas coisas que estão aqui e que a Ella está precisando.
E então, Raina abriu um sorriso.
— Você subiu e tomou um banho frio no terraço ou foi impressão minha?
— Eu... precisava desligar a mente um pouquinho — Carter respondeu, sorrindo também.
— A câmera enviou alerta de movimento e fui ver se estávamos sendo invadidas, mas só era você. Vai, está bem? Faz o que você precisa, eu estou bem.
Carter tocou a mão dela.
— OK.
— Hum, agora preciso voltar pra empresa — Ela terminou o pãozinho numa mordida só e deixou um beijinho em Carter — Te vejo no jantar?
— Nos vemos no jantar — Abriu um sorriso, bem mais aliviada.
Porém, quando Raina se moveu para sair da cozinha, Carter a segurou um pouco mais. A pegou na passada, puxando-a de volta, ainda sentada.
— Se eu estiver mesmo grávida, sei que esse bebê é nosso.
Raina cruzou os olhos dela, tocando aquele rosto bonito.
— Sei que você queria ter feito isso sozinha. Conversamos muitas vezes, e a Ella pode te acusar de muita coisa, menos de ter parado de acreditar que ela acordaria. Mas, no final, concordamos em fazer juntas e eu estou apegada. Acho que um filho seria mesmo muito bom para mim. Então, só...
— Vamos fazer juntas. Obrigada por essa conversa e por sempre estar do meu lado.
— Temos uma parceria, não é? E você é bem gostosa — Raina brincou, fazendo-a rir de novo. Rir, puxar para mais perto, correr as mãos pela sua cintura.
— Você também é uma grande gostosa, são muitos ganhos.
— Muitos — Tirando que, mesmo sendo gostosas assim, estavam há semanas sem ir para a cama.
Mas Raina não trazia problemas. Sabia como era ser alguém com problemas. O mínimo que se deseja é não ter novos problemas para se preocupar.
Trocaram outro beijo rápido (elas só trocavam beijos rápidos tinha um certo tempo também) e, então, Raina partiu para a empresa. Carter subiu de volta, tinha que terminar aquela mala, já estava quase atrasada. Fez algumas ligações enquanto arrumava tudo, achou o iPad de Ella, tirou o chip, baixou um programa específico e colocou para carregar enquanto fazia um FaceTime com sua mãe, contando tudo o que havia acontecido. Aproveitou e colocou alguns amigos brasileiros na mesma ligação para economizar explicações, e o misto de surpresa e alegria foi o que mais imperou.
Por fim, ficou apenas com sua mãe:
— A Ella vai entender, filha. Foi muito tempo, ela vai entender, sim.
Carter abriu um sorriso.
— Ninguém realmente cogita que eu possa...?
— Nem a própria Raina cogita isso, já conversamos hoje. Pra mim, ela parecia bem conformada com o que deveria acontecer em breve. Abrevie as coisas, Carter, vai ser melhor assim.
Abreviar. Está aí algo que era tão difícil quanto ficar submersa em água fria. Carter não era boa em abreviar, era boa em dar longas explicações, e nem sabia muito bem quando tinha se tornado essa pessoa. Enfim. Desligou com sua mãe e, quando estava prestes a fechar a mala, lembrou-se de uma coisa. Abriu o armário, subiu e, lá de cima, resgatou o que precisava.
Seu álbum de casamento.
Havia recebido aquele álbum duas semanas depois que voltara a Montreal e ainda estava lacrado. Recebeu uma versão virtual, que mantinha no celular, mas o físico nunca conseguiu abrir. Bem, colocou na mala e, sentindo-se um pouco mais leve, finalizou o que precisava.
Tomou mais um café e sentiu-se mais reenergizada, de uma maneira diferente. Como se o efeito do cold plunging tivesse voltado para o seu corpo de maneira reversa. Pegou a mala, a mochila que também havia arrumado, mas, antes de descer para a garagem, voltou ao seu banheiro e pegou os testes de gravidez. Três. Enfiou na mochila e, assim, desceu para a garagem, onde pegou seu carro e voltou para o hospital dirigindo.
E vestida como uma acionista.
Jeans, um suéter de gola V por cima, preto, deixando ver o colarinho da blusa branca de botões que usava por dentro. Os cabelos soltos, limpos e bem escovados, o rosto com uma maquiagem leve. Sky tinha se apresentado para Ella toda bonita e Carter havia chegado como uma mendiga, queria refazer a primeira impressão.
E refez, porque assim que entrou no quarto de sua esposa novamente, ela abriu um sorriso lindo. Ella Schafer estava sentada na cama, com a mãe e a irmã bem agarradas nela, e com uma aparência muito melhor. Carter se aproximou, deixou um beijinho no rosto dela.
— Bom — Ella conseguiu dizer, muito baixinho.
— O perfume que você gosta...?
Ela afirmou, era isso mesmo. Daí, escreveu na lousa: bonita. Isso fez Carter sorrir.
— Vim mais bonitinha, pra você não achar que me tornei uma sem-teto! — Disse, fazendo-a rir — Me fala, quer tomar banho antes da sua reunião? Vai começar daqui a pouco, eu trouxe a sua necessaire.
Ella quis, mas havia mudado de ideia sobre com quem queria o seu banho. Não fazia ideia de como estava, não tinha espelhos pelo quarto, até conseguia ver um pequeno reflexo seu na vidraça, mas não era possível se ver com clareza. Se estivesse feia, não queria que sua esposa a visse assim, de maneira mais clara. E não tinha ideia de como estava... intimamente. Então, quis ir para o banho com a ajuda de uma cuidadora e de sua mãe, deixando Carter sozinha com Grace por um pouquinho.
— Como foi encontrá-la de novo? Agora que ela sabe que você é você? — Carter perguntou, sorrindo, e Grace sorriu também. Elas não paravam de sorrir.
— Foi incrível! A gente chorou um pouquinho, mas acho que é normal, não é? Ela me abraçou e essa é a melhor sensação do mundo! O que muito me doía era lembrar do abraço que sempre me acolheu e achar que nunca mais teria isso. Mas, eu tive — Ela seguia com os olhos cheios — A Ella disse que estou linda, como sempre, não importa a versão. E eu expliquei que mudei nesse tempo e que vamos conversar com calma nos próximos dias. Mas deixei claro que estou feliz com esse corpo, com essa aparência. Ela fez perguntas sobre como estamos financeiramente, e eu disse que você cuidou da gente. Ela ficou feliz em ouvir, mas nadinha surpresa. E me falou da reunião com a equipe mais tarde.
— Sim, podemos acompanhar, nós três. Pedi para a terapeuta ser sincera e não esconder nada dela, e eu sei que isso pode deixar a sua irmã triste. Mas vim preparada para distrair a mente dela um pouco, se for necessário.
Grace respirou fundo, concordando.
— Eu... não sei o quanto estou preparada para ouvir tudo, Carter.
— Você está preparada, sim. Vamos fazer isso juntas — Daí, seu celular deu sinal — Só um instante, a esteticista chegou.
— Você chamou uma...?
— Sim, sei que a Ella vai se sentir melhor.
Carter havia ficado se perguntando que coisa podia ter o efeito de um cold plunging em Ella, que havia acabado de acordar, e chegou à conclusão de que ela nem precisava de tanto. Um ótimo banho e cuidados pessoais também resolveriam muita coisa.
Então, chamou a mesma esteticista que a cuidava desde o coma. Carter nunca permitiu que ela ficasse descuidada, sabia o quanto sua esposa era vaidosa e ainda tinha a questão das cicatrizes, que estavam a preocupando um pouquinho. Ella havia sofrido a pancada na cabeça e um corte no rosto, pouco abaixo de um dos olhos, que deixou uma cicatriz. Pequena, mas ela estava ali.
Bem, Ella saiu do banho de roupão e pareceu bem feliz com isso, só por estar usando algo diferente de uma camisola. E ficou mais feliz ainda quando notou que tinha alguém ali para cuidá-la.
Nia e Grace tiveram que sair, para não tumultuar, mas ficaram do lado de fora, assistindo Ella ser cuidada minuciosamente. A esteticista cortou os cabelos dela, tirou as pontas, deixou mais curto, fez uma franja longa que a deixou mais parecida com ela mesma. E então, cuidou das unhas, cortou, serrou, deixou bem limpas, e fez tudo isso enquanto Ella relaxava com uma máscara facial.
Foi bom. Sentir-se limpa e cuidada de novo foi ótimo, na verdade.
Sua mãe havia lavado seus cabelos, a ajudado a escovar os dentes, e isso a deixou um pouquinho ansiosa: achava que conseguia escovar os próprios dentes sozinha, porém, mal conseguiu erguer seus braços por alguns centímetros e por um tempo bem curto.
E depois das unhas, dos cabelos e da limpeza de pele, a esteticista finalizou tudo com uma massagem, e estava tão bom que Ella nem sabia.
Bom.
Tudo era aterrorizante, mas estar viva era INCRÍVEL.
E quando a moça se retirou, altamente surpresa por Ella estar acordada também, Carter se aproximou com uma mala. Por que uma mala tão grande? Ella não tinha essa resposta.
— Quer vestir outra coisa que não seja essa camisolinha sexy de hospital?
Ela riu, sim, queria! E Carter havia trazido uma calça esportiva, que era sua, com as laterais abotoadas, o que facilitava na hora de vestir. Colocou a calça nela, as duas em silêncio, apenas se olhando, se sorrindo, elas não pareciam enjoar disso nunca. Daí, a vestiu com uma camiseta e uma jaqueta puffer por cima, inteira da Adidas, sua marca preferida. Então, sorriu, sua esposa estava tão lindinha, de banho tomado, cabelos cortados, devidamente escovados, aquele rostinho lindo. Carter nem sabia.
— Ah, mas você está bonita demais! — Pegou e cheirou a mão dela um pouquinho, aquele cheirinho delicioso de mulher cara, que faz skincare coreana e se perfuma com produtos franceses. Ela sorriu com o carinho — Podemos ir? Vamos nos atrasar assim.
Ella pediu um segundo e, com muita dificuldade, escreveu uma pergunta:
"Tem uma cicatriz na minha cabeça?"
— Tem, tem, sim, foi do trauma na pedra.
"É feia?"
— Não, linda, não dá para ver. Mas tem uma marquinha bem aqui — Delicadamente, pegou a mão dela e, com a ponta do dedo, a deixou sentir a marquinha pouco abaixo do olho direito. As sobrancelhas expressivas se mostraram preocupadas — Mas é muito pequena, quase não dá para ver também, tanto que qualquer uma dessas suas bases caras consegue cobrir.
Ela escreveu de novo: "Você pode cobrir?"
Foi assim que, antes de irem para a reunião, Carter fez a pele de sua esposa.
Delicadamente, com cuidado, usou um pincel confortável, que causava um relaxamento. E aquilo era surreal. Seus olhos se encheram um pouquinho porque achou que nunca mais fariam isso. Elas costumavam fazer a maquiagem uma da outra, era um tópico de que ambas gostavam. Fez uma camada muito fina, apenas para cobrir mesmo, um pouco de gloss na boca e pronto, nada de mais. Ella estava linda e natural.
Assim, elas saíram do quarto, Carter a empurrando na cadeira de rodas até a sala onde havia participado da outra reunião no começo do dia.
E foi andar e sentir uma dor.
Carter, não Ella.
— Eu... — Se segurou na cadeira e na parede. Nia notou imediatamente.
— Está tudo bem? Olha aqui pra mim, Carter. Está tudo bem?
— Sim, é... — A dor apertou no seu abdômen — Só preciso ir ao banheiro — Se moveu e Ella a segurou. Ela não tinha como falar, mas Carter conhecia aqueles olhos como ninguém — É uma cólica, eu ando tendo cólicas muito fortes, é um problema recente. Mas eu já venho, está bem?
Ella olhou para Grace, e os olhos eram expressivos mesmo.
— Eu a acompanho. Vamos lá, Carter.
Assim, Ella ficou com Nia, e Grace foi até o banheiro com Carter, a apoiando.
— Carter, não é melhor chamar alguém?
— Não, eu sei como essas crises são. Não é grave, vai aliviar quando eu for ao banheiro.
Daí que entrou para o reservado do banheiro e Grace ficou na porta. Tentou fazer xixi, mas estava com muita dor mesmo. Ficou esperando conseguir e, por algum motivo, pegou um dos testes de gravidez na mochila.
Tirou da caixa, ficou olhando para ele.
E quando finalmente sentiu que ia conseguir urinar, não pensou muito. Apenas coletou.
Daí terminou, se higienizou, se vestiu de novo e ficou sentada sobre o vaso fechado, os olhos naquele bastão.
— Carter, tudo bem?
— Tudo, é... só mais um instante, Grace.
Esperou um pouco mais, sua perna batendo sem parar. Ainda estava sentindo dor e ficou com medo de que... Seus olhos se encheram, começou a chorar em silêncio.
— Grace, você pode chamar uma enfermeira?
— Espera! — A ouviu sair correndo imediatamente e, apenas uns minutos depois, ela voltou com alguém.
— Grace, pode esperar do lado de fora?
— Carter, o que está acontecendo?!
— Não é grave, só é íntimo.
— TÁ! Mas vou ficar na porta.
E entre ela dizer que ia esperar na porta e a enfermeira entrar no reservado, o resultado do teste surgiu.
Foi como mergulhar num cold plunging intenso, apenas com pedras de gelo, enquanto seu coração simplesmente parou de bater.
Notas da Autora sobre Água Rasa: Tessa Reis
Olá, todo mundo! Como estamos?
Por aqui, Carter acaba de descobrir algo que estava adiando, mas que agora não tem mais como negar. Aparentemente, com a coisa que ela mais desejava na vida — o despertar de Ella — também vieram desafios para os quais ela apenas achava que estava pronta. Mas é aquela máxima, não é, gente? Ora, ora, ora, se não são as consequências das minhas próprias decisões. hahaha.
À parte disso, aproveito o espaço para dizer que acho que nenhuma outra personagem minha sofreu tanto quanto a Carter antes. Nina James, seu sofrimento foi superado!
Próximo capítulo: “Reset”. É hora de limpar a bagunça e recomeçar 😊.
Voltamos dia 7/2!
Grande beijo!
Tessa.
olha até eu fiquei aqui chacoalhando as pernas pensando nesse bendito teste kkkkkkk