
Reset
Carter precisou de ajuda para se acalmar, para voltar a respirar, e a enfermeira cuidou muito mais do seu emocional do que do seu corpo. Estava altamente nervosa, tremendo sem parar.
— É que tem esse resultado... Eu não posso estar...?
— Perdendo o seu bebê? Não, não temos sinais disso. Você está bem, OK? É uma cólica, mas não há sinais de aborto.
— Tenho endometriose, e essa é uma possibilidade, daí que...
— Está tudo bem, eu garanto pra você. Os sinais são muito claros. Você quer que a gente suba e faça um exame mais detalhado?
Carter fechou os olhos e respirou fundo, tentando se acalmar por um instante. Não podia ficar nervosa daquela forma. Havia outras coisas acontecendo naquele exato momento. Não devia ter feito aquele exame assim, mas, já que havia feito, precisava se manter calma.
— Não, eu preciso ir para uma reunião com a minha esposa — Lagrimou ao dizer isso.
— Sua esposa, que acabou de acordar.
— É — Outra longa respiração.
— Senhora Schafer, isso tudo é delicado, eu sei, mas um bebê, na maioria das vezes, é algo bom, que muda cenários complexos.
Carter concordou, de cabeça baixa.
— Posso contar com a sua discrição sobre isso?
— Claro que sim, não se preocupe. Se sente melhor? Posso ver um medicamento seguro que ajude na sua dor.
Concordou sobre isso também e ficou esperando no banheiro enquanto a enfermeira retornava. Tomou um remédio para dor, agradeceu e sentiu falta do seu escritório. Queria muito se enfiar embaixo da sua mesa e desaparecer por alguns minutos. Mas não podia.
Passou a tarde toda refletindo sobre possibilidades, e aquela era uma da qual não podia fugir por muito tempo. Talvez seu ímpeto de fazer o teste tenha vindo dessa necessidade — saber tudo de uma vez era a única forma de começar a pensar no futuro. Havia decidido tentar a gravidez depois que descobriu a endometriose. Teria que fazer uma cirurgia agressiva em breve, que incluía a remoção do útero, e quis tentar engravidar antes disso, mesmo com os riscos.
Não sabia bem de onde isso havia vindo. Nunca quis ser mãe, mas, quando começou a namorar Ella, esse tema se tornou constante entre elas. Sua esposa queria ser mãe e queria que fosse planejado. Em cinco anos, após o casamento, estariam na idade certa, mais maduras, mais consolidadas profissionalmente.
Os planos, quando retornassem da lua de mel, eram de que Carter abrisse seu próprio escritório de ESG. Ela continuaria liderando o escritório do Rio, mas abriria um em Montreal também, e em cinco anos, tudo isso estaria maduro. Elas teriam tempo para engravidar e curtir essa gravidez.
Achava que tinha se apavorado ao ouvir que perderia o útero em breve. Se Ella não poderia mais ser mãe, achou que deveria ser por elas duas, seguir mais esse plano, e por isso quis fazer tudo sozinha. Mas, no final, havia concordado em fazer isso com Raina. Parecia o mais justo, sendo que estavam numa relação. Mas agora tudo havia mudado.
— Carter? Posso entrar? — Era Grace, ainda da porta.
— Pode, pode sim — Respirou fundo de novo e se recompôs o melhor que pôde.
Grace entrou.
— Tudo bem? Você melhorou?
— Melhorei, sim. Já podemos ir.
— Certeza?
— Certeza. Vamos lá!
E, mais preocupada do que Grace, apenas Ella.
Ela estava esperando na entrada da sala, não quis entrar sem a esposa. Então, quando Carter a olhou...
Se abaixou, beijando-a no rosto, na pálpebra — coisa que sempre fazia Ella rir — e terminou com um selinho, o primeiro desde que acordou.
Sorriu, porque já estava estranhando a falta de beijos. Porém, também como estaria o hálito de quem dormiu por cinco anos? Questões que Ella Schafer estava analisando com calma.
E Carter a olhou nos olhos um pouco mais, mantendo a mão dela na sua, onde deixou um beijinho, como sempre fazia. Amava aqueles olhos. Amava sua esposa.
Como resolveria tudo? Dava para resolver tudo?
Resetar. Precisava resetar a sua mente, e foi o que fez.
— OK, acho que a gente tem que entrar.
Entraram, e Ella, toda lindinha e arrumadinha, causou uma ótima impressão! Arrancou sorrisos, elogios. Ficava ainda mais surreal olhá-la assim, arrumada, com aquele sorriso aberto.
Então a reunião começou, e elas foram perdendo o sorriso lentamente.
Em resumo, Ella estava bem, mas também muito debilitada. Estava bem porque havia acordado sem danos neurológicos. Haviam recebido os exames completos. Não havia lesão neurológica estrutural: suas estruturas estavam perfeitas e preservadas.
Mas, por outro lado, todos os outros exames eram preocupantes. Ella estava com baixa de vitaminas, quase sem gordura no corpo, os músculos eram quase inexistentes.
Não poderia comer alimentos sólidos e nem líquidos por enquanto. Sua laringe estava mesmo enfraquecida, o que explicava não conseguir sequer falar sem um enorme esforço.
Podia ingerir água, caso fosse cuidadosamente, e, a partir disso, iriam evoluindo na ingestão de outros alimentos líquidos.
Além disso, não deveria se esforçar para falar sozinha, nem se encher de informações. Precisava ser responsável pela própria mente. Convulsões eram impulsos elétricos desordenados. Era provável que tivesse que conviver com o risco de convulsões dali pra frente.
Devia se preparar para dias cansativos, em que teria que se esforçar para cumprir suas agendas de fisioterapia, fonoaudiologia, exames regulares e acompanhamento psicológico diário.
Teria pequenas metas semanais. Tudo dependia do corpo, de como ele reagiria. Não existiam muitos casos para poderem comparar: Ella era única.
E, por fim, foi feito um pedido de estudos clínicos. Alguns especialistas estavam interessados no caso dela. Ella era uma mulher de negócios, mas era uma mulher da ciência também. Concordou com o estudo.
Mas deu para ver que o que ela realmente sentiu foi a última coisa apresentada naquela reunião:
Previsão de alta? Em seis meses.
Ella sequer fez perguntas. Apenas absorveu aqueles meses.
E, quando Carter voltou com ela para o quarto, após terem se despedido da mãe e da irmã, sua esposa acabou chorando um pouquinho.
— Ei, não, linda, espera, eu trouxe algumas coisas pra gente — Carter foi até a bolsa e tirou um iPad lá de dentro, entrou com a senha e trouxe para Ella — Aqui, baixei esse app pra você. Você só tem que olhar para as letras, o sensor vai escrever o que precisa. Quer testar?
Ela respirou fundo e quis testar e, realmente, funcionava! Acabou sorrindo, mesmo com os olhos cheios, e escreveu uma frase inteira:
"Seis meses é muito tempo."
Além de escrever, um robozinho falava a frase por ela.
— Hum, eu aposto que você vai fazer em menos.
"Mesmo?"
— Mesmo. Você ouviu? Você é um caso único. Vai fazer em menos tempo. Alguma coisa mais te assustou?
Ella percorreu as letras com aqueles olhos claros, mais esverdeados do que azuis.
"Me dei conta de que fiz 30 anos."
Carter ouviu e começou a rir.
— Eu fiz também! E os trinta não nos mataram, está vendo? Ainda me sinto jovem. Você está bem no geral, sem dor?
Ela afirmou que estava sem dor.
— Hum, se é assim, daqui a pouco alguém vem te dar o seu jantar e eu vou pedir um jantar pra mim, e daí... — Carter foi até a mala e tirou de lá algo que Ella não fazia ideia do que era. Ficou por aquele rosto expressivo a dúvida — Isso aqui é um projetor. A gente coloca o celular bem aqui — Encaixou o celular, e o aparelho projetou a tela no teto!
Ella ficou empolgada.
— Legal, não é? Então, vamos assistir ao show da Billie daqui. Vai começar em — checou seu relógio masculino no pulso — duas horas. Podemos ir assistindo aos outros shows enquanto ela não entra. Você gosta dessa ideia?
Os olhos de Ella se encheram novamente, mas ela terminou sorrindo. Gostava da ideia, sim, e sabia muito bem que ninguém além de sua esposa pensaria em algo tão delicado e que fosse gostar tanto. Carter já deveria saber do tempo que teria que ficar no hospital e pensou em algo para distraí-la.
— Eu trouxe muitas coisas que vão te entreter quando você tiver uma folga. Baixei os álbuns da Billie aqui no Spotify do iPad e também O ano em que morri em Nova York no Kindle. Lembra que você queria ler na lua de mel? — Perguntou, já indo para o ladinho dela na cama, a fazendo recostar no seu corpo.
Ela recostou e só era muito bom. Principalmente durante aquela crise de nervos que Carter sentia querer levantar por dentro de si o tempo todo. Mas não surtaria. Estava decidida a ter um tempo com Ella e a não surtar.
"Abrevie as coisas", sua mãe havia dito. Decidiu que abreviaria todas as suas preocupações em nome da primeira noite de Ella acordada.
"Comecei a ler?" — A voz robótica do Google perguntou.
— Hum, na verdade, a gente estava na Itália, loucas de tesão, mal conseguíamos sair da cama, então temo que não — A resposta a fez sorrir de novo — Não li ainda também, vou ler com você. E eu trouxe o nosso álbum de casamento.
Com isso, aqueles olhos lindos brilharam!
Então, a enfermeira entrou e disse que Ella precisava voltar para suas roupinhas de hospital porque precisariam da veia dela para o jantar. Não tinha problema, a trocaram de volta, ela foi colocada de volta no acesso, e Carter recebeu o seu jantar: uma salada de frutas.
Quando a enfermeira as deixou sozinhas novamente, Carter pegou seu álbum de casamento, que ainda estava lacrado.
"Você não abriu?"
Daí, foram os olhos de Carter que encheram um pouquinho.
— Julguei que eu fosse chorar muito se abrisse. Fiquei olhando para ele por dias, semanas, meses. Ficava lá na nossa mesinha de centro. Daí, um ano depois, decidi que guardaria e que a gente veria essas fotos juntas.
"Você sempre teve certeza de que eu iria acordar?"
— Claro que sim. Mas tinha momentos em que me dava um desespero também, porque ninguém mais acreditava nisso exatamente, além de mim e da sua família. E da Sky também. Ela achava mesmo que você acordaria — Contou e acabou sorrindo — É... acha que podemos ver agora?
Ella tinha certeza de que podiam, sim, ver agora. Mas seus olhos se encheram também, tal como os de Carter, e elas acabaram se abraçando e chorando, mas só um pouquinho.
Então, Ella sorriu. Porque, sim, havia dormido cinco anos, e isso era uma tragédia, mas seu casamento havia sobrevivido, e isso era tudo o que importava.
Deslacraram o álbum juntas, e foi positivamente emocionante olhar para aquelas fotos pela primeira vez.
Estavam muito lindas, inegavelmente lindas. As duas brilhando, os sorrisos não se fechavam, os olhos condensavam felicidade.
Os vestidinhos pretos, tão criticados, ficaram lindíssimos. De alguma forma, contavam que era um casamento. Mesmo justos, mais curtos, não importava: contavam que era um casamento, e que as noivas estavam transbordando amor para todos os lados.
Haviam se casado num final de tarde, no Jardim Botânico de Montreal, considerado um dos mais bonitos do mundo. Haviam vencido a vontade do pai de Carter, que queria um mega casamento, e conseguido algo relativamente menor, para cem convidados.
A mesa de doces parecia uma joia! O bolo de casamento tinha quatro andares e era decorado com frutas de inverno fresquinhas. Tudo muito bonito e delicioso! As duas lembravam o quanto o bolo das noivas estava incrível. Tinham, inclusive, levado para a lua de mel uma mochila apenas com potinhos cheios daquele bolo e outros com docinhos, o que gerou uma belíssima cena no voo que as levou para a Itália.
No meio do voo, elas abriram a tal mochila de doces e comeram do potinho em plena primeira classe.
Carter contou isso, e ela só acreditou porque tinham fotos.
"Estava realmente muito bom!" — Ella concordou, sorrindo demais.
O projetor já estava transmitindo o último show antes do show da Billie. Daí, Ella ficou um pouquinho triste:
"Por que não me lembro da nossa lua de mel?"
— Hum, isso não importa muito — Carter terminou seu jantar, deixou o copo de lado e se apertou juntinho dela de novo, confortavelmente — O que você não lembra, eu posso te contar. E temos muitos, mas muitos registros da nossa lua de mel. Mas isso terá que ser com o tempo. Não temos pressa também.
Ela escreveu no iPad: "Lembro de coisas que não sei se aconteceram."
— Isso também é normal. A terapeuta acha que essas memórias irão se ajustar. Sua confusão mental vai diminuir.
Ella se recostou no peito de Carter de novo, ficando bem juntinhas. Escreveu mais uma vez:
"Eu queria um relatório escrito com o que foi dito na reunião. Para eu poder estudar."
Carter cheirou os cabelos dela, achando uma graça.
— Um relatório, Ella?
"Sim! Como vou poder comparar a minha evolução sem um relatório? Esse povo daqui tem que ser mais organizado."
Carter já estava morrendo de rir.
— Vou solicitar um relatório escrito, com tabelas comparativas, senhora Schafer.
"Eu agradeço por isso." — Ela respondeu, sorrindo.
— Ali, olha, terminou o último show! O nosso vai começar.
E no apartamento em Downtown, Raina havia acabado de chegar.
O silêncio imediatamente contou que Carter não estava em casa. Ela nunca era silenciosa, nunca. Se estava em casa, uma TV estava ligada ou uma música estava tocando. O silêncio a incomodava, e isso tinha a ver com hospitais. Eram todos silenciosos. Eram todos tristes e a lembravam do estado de Ella.
Bem, Raina também não gostava de silêncios, pelo mesmo motivo. Sua namorada havia ficado em coma por duas semanas, mas sempre lhe parecia anos quando pensava no tempo que passou naquele hospital. E o silêncio era ruim mesmo.
Ligou a TV e notou que a Billie Eilish estava no palco. Foi até a cozinha, pegou umas frutas congeladas, bateu no liquidificador rapidinho, fazendo um smoothie, apesar de estar frio. Cold plunging também funcionava dessa forma para Raina. Despejou num copo, tomou um gole longo, sentiu seu cérebro congelando imediatamente e fechou os olhos. Tinha certeza de que não veria Carter para o jantar e não podia culpá-la. Se fosse Julie acordando do nada, ninguém a tiraria do lado dela.
Mas a questão toda era que...
Gostava muito dela. Gostava mais de Carter do que de qualquer outra com quem estivera depois de Julie, e abrir mão não era tão simples mesmo. Mas lutar contra também nem parecia inteligente. Nossa, que situação era aquela? Nem fazia 24 horas que Ella Schafer estava acordada, e aquela casa não parecia mais sua. Não estava mais confortável ali.
Na verdade, havia começado a se sentir confortável naquele apartamento há menos de dois meses. Era muito recente, e achava que esse sentimento tinha vindo da decisão pelo bebê juntas. Mas agora isso tudo havia desabado de novo. Seus olhos quiseram se encher ao pensar nisso, mas ela recusou. Já tinha chorado muito antes, por coisas realmente ruins. Não iria chorar por algo que envolvia o renascimento de uma pessoa.
Respirou fundo, pegou seu celular, pensou um pouco e apenas ligou.
— Oi! Você é um tipo que liga — Ela havia atendido no terceiro toque.
— E ainda bem, você é um tipo que atende! Hoje é comum as pessoas deixarem o celular tocar mesmo com ele em mãos e então mandarem uma mensagem logo em seguida. Me acontece muito — Contou, fazendo-a rir um pouco.
— Eu geralmente faço isso quando alguém que liga, liga. Mas decidi te atender porque eu disse claramente que você podia ligar — Era Sky, em um tom muito descontraído, bem relaxado. Ela era assim naturalmente.
— Verbalmente expressou isso mesmo. É... você está no hospital?
— Na verdade, estou saindo agora.
— Quer comer alguma coisa? Eu cheguei, mas estou meio sufocada aqui.
— Vamos fazer assim: vou te enviar um endereço por mensagem. Me encontra lá em uns vinte minutos? Daí a gente come alguma coisa e conversa.
Raina pensou um pouco. Seus olhos se encheram, mesmo contra a sua vontade, e perdeu uma lágrima. Concordou. Claro que podia encontrá-la em qualquer lugar que fosse.
Qualquer lugar seria melhor do que aquele apartamento vazio e que não lhe pertencia.
E, de alguma maneira, Carter tinha realmente conseguido bloquear o fator “gravidez”.
Devia estar um pouco como Ella, que havia recebido a notícia dos cinco anos, mas ainda estava processando. Carter se sentia da mesma maneira. E havia sido um teste só. Esses testes também falham. Se convenceu mentalmente de que só surtaria depois de um exame de sangue e, sendo assim, apenas assistiu ao segundo Coachella da sua vida, bem agarradinha na sua esposa.
Sim, era um hospital e, em se tratando de som, tiveram que ouvir apenas com o alto-falante do celular, mas não era um problema. De forma nenhuma era: o importante era estarem ouvindo sua cantora preferida juntas mais uma vez.
Ella amou ver Billie de novo, amou! Ficou empolgada, os olhos brilharam, ficou sorrindo sem parar, tanto ao ouvir as músicas que já conhecia quanto quando ouviu as novas. E eram muitas. Com toda certeza do mundo, aquele público enorme conhecia cada uma delas.
Billie Eilish estava cinco anos mais velha. Sua esposa estava cinco anos mais velha. Ella havia feito 32 há alguns meses, Carter faria 33 em mais alguns. Ella lembrava, particularmente, de como Beatriz, a mãe de Carter, havia ficado preocupada por elas estarem se casando relativamente novas.
“O tempo passa muito rápido. Será que não estarão perdendo coisas importantes dos vinte anos de vocês assumindo um compromisso tão sério?”
Bem, agora os vinte haviam partido. Uma tragédia aconteceu, mas estavam juntas, em um date romântico, assistindo a um show no teto do quarto em um projetor de celular.
Ella acabou dormindo pouco antes do show terminar. Carter foi pedindo que ela não resistisse. Estava muito frágil ainda, e, se o corpo estava pedindo que dormisse, devia obedecer. Iria conseguir o show para ela assistir quantas vezes quisesse.
E, tal como se faz com um bebê, assim que Carter percebeu que ela tinha mesmo caído no sono, foi se movendo devagar, a transferindo do seu braço para o travesseiro, se mexendo com muito cuidado, até finalmente sair da cama. Parou o celular, o soltou do projetor, deu uma olhadinha no horário: era cedo, dez e vinte ainda.
Juntou suas coisas, cobriu Ella com cuidado e a encheu de beijos no rostinho. Bem mais do que deveria, mas não conseguiu resistir. Sua esposa dormindo estava no seu top 10 de coisas mais lindas no mundo, e era um absurdo o quanto isso — que era algo que amava muito de ver — tinha a aterrorizado tanto por causa do coma.
Agora, podia apenas voltar a admirar sua garota dormindo.
Deixou um bilhete para ela, explicando que teria que trabalhar no dia seguinte, mas que viria vê-la assim que possível.
Deixou mais uns beijinhos nela: no rostinho, na pálpebra, mais um selinho e, finalmente, saiu daquele quarto.
Pegou seu carro no estacionamento. Estava gelado! Mas havia saído preparada para o frio daquela vez.
Dirigiu, se sentindo estranhamente relaxada pelo caminho. O dia ainda parecia irreal toda vez que pensava nele, mas achava que tudo ficaria mais real com o decorrer dos dias.
Chegou no seu prédio, estacionou, subiu para o seu apartamento ainda respondendo mensagens. Respondeu muita gente e ainda tinha umas quinhentas a responder. Mas daí que entrou no apartamento e...
Sons estranhos estavam vindo do andar de cima.
— Raina? — Deixou a bolsa sobre o sofá, tirou o casaco e, quando subiu as escadas, aquele som estranho apenas se tornou mais estranho ainda. Passou pela entrada do quarto principal, seguindo para o quarto de hóspedes, que estava aberto, e quando chegou nele... — SKY?!
— Ah, oi! É... não é o que você está pensando.
— Você está na minha casa, no meu quarto!
— Eu sei! Mas é que... Escuta, eu saí com a Raina, ela bebeu um pouco demais e não está passando muito bem. Daí, eu a trouxe pra casa, mas... — O som contava exatamente o que estava acontecendo.
— Sério?
— Sim, e você é a namorada. Ao menos, ainda é. Agora que ela já está entregue, eu preciso ir, tenho que estar no hospital muito cedo, você sabe — Deixou um beijo no rosto de Carter.
— Garota! Sério que você levou a Raina pra beber?
— Não, eu a levei para jantar, num bar de esportes, e, de repente, ela perdeu a mão na bebida. Preciso ir, Carter, mas me liga se precisar de alguma coisa, OK?
E assim, ela realmente foi embora, e Carter não estava exatamente acreditando naquilo ainda.
Bem, tirou seu suéter, subiu as mangas da camisa branca, e Raina realmente estava vomitando tudo e qualquer coisa, sentada no chão do banheiro e abraçada ao vaso sanitário.
— Raina...
— Sai, Carter, não fica aqui! Eu...! — Não completou a frase, voltou a vomitar.
Sentia que ela ia mandá-la sair, mas Carter nem podia fazer isso. Ajoelhou-se atrás dela, mantendo-a contra seu corpo, foi falando com ela, segurando sua cabeça mais alta, ficando até aquele acesso parar. Carter havia cuidado de Ella daquela forma algumas vezes. As piores brigas que tiveram sempre foram por momentos assim.
O plot twist era que, após o acidente, quem esteve naquela situação algumas vezes foi Carter. E quem tinha lhe cuidado em algumas dessas vezes? Aham, Raina. Inclusive, antes de estarem ficando juntas.
Então, teve paciência, cuidou dela e, depois que o enjoo se acalmou, a colocou no banho.
Raina estava nervosa, irritada, teimosa e, por fim, só começou a chorar.
— Raina, sério...
— Eu gosto de você! O pior dessa situação é que gosto de você — Ela começou a dizer absolutamente do nada, sentada sob o chuveiro, recostada na parede — Não é o pior, é o melhor, na verdade, não é? Eu... achei que não fosse me envolver com ninguém nunca mais, Carter — Disse, lagrimando — Achava que ter perdido Julie tinha me mudado para sempre, que eu estava morta também, que não podia mais gostar de outra pessoa. Você foi o mais longe que fui e agora não me sinto bem aqui!
Carter já estava toda molhada, havia entrado no box com Raina, de roupa e tudo, quando ela desequilibrou e acabou indo parar no chão, onde estava agora.
— Você diz aqui no apartamento ou...?
— Aqui no apartamento! A gente deveria ter ido para outro lugar, mas pensei também que você estaria amando a Ella até se a gente se mudasse para a Lua! Eu não te amo loucamente — Declarou, de maneira até engraçada.
— Você... não me ama?
— Não loucamente! Mas eu te amo um pouco, e a gente ia ter um bebezinho. Porém, agora a Ella acordou e isso é maravilhoso, mas ela acordou e eu vou ter que sair daqui. E depois, vou ter que sair da empresa. Talvez eu até tenha que sair do PAÍS porque Ella Schafer vai me caçar depois que souber que a gente estava namorando.
OK, agora Carter acabou rindo mesmo. Sentou-se no box, tirou os tênis que ainda estava usando, tirou a camisa também.
— Neste caso, é possível que a gente tenha que fugir junto. Você sabe que a casa não é minha, a empresa não é minha e a gente estava namorando. Ella vai demitir nós duas.
— Você acha que ela vai mesmo me demitir...?
Carter começou a rir, agora bem mais relaxada.
— Acho que ela não vai demitir ninguém. Você é ótima profissional, ocupa um cargo de confiança, o conselho recusaria — Os cargos de confiança eram escolha do conselho.
— Você é dona da empresa também, Ella Schafer não pode te demitir. Pode só... se separar. Mas acho que ela não faria isso. Vocês são loucas uma pela outra, eu me lembro. Ela te ama muito.
— E você não me ama.
Raina chorou um pouco mais.
— Eu não te amo. Mas gosto muito de você, a vida estava boa, estava... numa rotina. Estava quase amando você, e agora estou com medo de não conseguir chegar nesse ponto com mais ninguém. Eu continuo quebrada — mais lágrimas — O que é muito frustrante porque já se foram quatorze anos, é quase metade da minha vida toda, e ainda estou no mesmo lugar.
— Raina, claro que não. Você é linda, é ótima namorada, nem eu e nem as outras temos do que reclamar. Eu nunca havia amado ninguém até a Ella. O que não significa que eu não gostava das meninas com quem já fiquei. É que o amor é para ser raro mesmo. Acho que quem está errado não é a gente, são essas pessoas que amam todo mês, entende?
Raina acabou rindo.
— Acho que... que isso faz sentido — E, daí, ficou um pouco mais séria de novo — Por que a gente não está transando mais?
Os olhos de Carter se encheram um pouco.
— Tenho sentido muita dor, devia ter verbalizado isso para você mais claramente — Era uma meia verdade.
— Não é porque seu coração estava sentindo que a Ella ia acordar?
— Eu... acho que não. É só o desconforto da endometriose.
— Achei que tivesse perdido o tesão em mim.
— Me desculpe, Raina.
— Para com as desculpas, isso não precisa.
Elas ficaram quietas por um instante. Então, Raina falou novamente:
— Vocês ficaram?
— Ella e eu?
— Não, eu e a Sky — Respondeu, fazendo Carter rir, porque Raina era sempre muito gentil e polida, mas estava o contrário disso, bêbada.
— Vocês ficaram? Já que saíram juntas e nenhuma de vocês acabou de acordar de um coma, onde não consegue mover propriamente nem as cordas vocais para uma conversa.
— A Ella não está falando mesmo...?
— Não está. Não consegue andar e nem segurar um copo de água para beber sozinha.
— Ah, eu sinto muito — Raina disse, realmente sentida.
— Ela vai se recuperar em breve. Vocês ficaram?
— Não, eu só... fiquei falando de você e de como vou te perder em alguns dias. Acho que você não está grávida, eu só queria muito que estivesse para prolongar nós duas de alguma maneira. Será que eu te amo? Acho que não sei reconhecer isso muito bem, Carter — Disse isso e só voltou a lagrimar.
Carter lagrimou também um pouquinho.
— A gente devia ter transado domingo. Você queria, não é? Agora, a nossa última vez vai ter sido há meses — Raina disse, fazendo Carter rir demais. Que final de noite inesperado.
— Eu queria, mas você estava cansada, não era?
— Estava, mas devia ter transado mesmo assim, eu só ficaria cansada para começar. Carter, o apartamento de baixo vagou, você sabia?
— Não, não sabia, não.
— Eles se separaram. Os meninos que moravam aqui embaixo — Ela respirou fundo — Acho que vou pegar.
— Raina, você sabe que não precisa, não sabe? A previsão de alta da Ella é pra daqui a seis meses.
— Ela vai fazer em menos. A garota acordou depois de cinco anos, ela vai fazer em menos, aquela teimosa.
— Eu também acho que vai. Mas, ainda assim, vai levar meses.
— É o tempo que a gente se ajusta. Você pode, por favor, fazer um exame?
— Eu fiz um hoje, desses de farmácia.
E aquilo pegou a atenção dela.
— E qual foi o resultado?
Carter lagrimou.
— Positivo.
— Isso... — Os olhos dela se encheram de novo — Mesmo?
Afirmou que sim.
— Mas foi um teste de farmácia. Pode ter sido um falso positivo. Farei um exame de sangue amanhã, tudo bem?
Ela confirmou sorrindo. Tudo bem, podia ser assim. Elas ficaram quietas por um tempo, respirando fundo.
— Raina, eu queria fazer uma cena, dizer que você está se equivocando, mas isso nem parece com a gente.
— A gente não é assim, mesmo — Ela lhe olhou com carinho — Vou ver o apartamento. Mas agora... é melhor a gente tomar banho e ir dormir. Tem uma reunião chatíssima amanhã, e você que tem que ir. Eu não te amo, mas também amo. Deve haver escalas de amor também. Nem todos eles devem ser devastadores.
— Eu concordo. A gente se ama e é diferente. Tenho muita, mas muita sorte de ter você comigo, de verdade.
Raina navegou até o outro lado, se pondo entre as pernas de Carter, se fazendo caber nos braços dela, que lhe envolveu com carinho.
— Eu também tenho muita sorte de ter você. E se o nosso bebê realmente estiver aí, dentro de você... vai ser bom, não é?
Carter beijou o ombro dela com carinho.
— Vai ser bom, de uma maneira ou de outra. Agora, vamos terminar esse banho?
Tomaram banho juntas e, para um casal que não se amava, estava doendo terem que se separar. Mas era maduro também. Carter sabia dos seus sentimentos muito bem, sabia que eles não iriam mudar. Não era prematuro, só era algo que iria acontecer.
Não existia uma condicional para ela e Raina: não era como se, caso Ella terminasse tudo, Carter tivesse a opção de Raina. Elas nunca seriam assim. Nunca foram plano B uma da outra. A ideia sempre foi ficarem até onde desse pé e agora... não estava dando mais.
Terminaram o banho. Carter a vestiu, secou os cabelos dela, a colocou na cama.
— Será que amanhã você vai lembrar de tudo o que a gente conversou? — Carter perguntou.
— Eu vou. Não tenho amnésia alcoólica, é por esse motivo que eu nunca bebo. Carter?
— Oi...
— Você pode dormir no quarto principal. É melhor.
— Raina, a gente dormiu junto até ontem.
— Eu sei. Mas realmente sinto que tudo já mudou hoje — Se sentou na cama — Carter, lembra de uma entrevista que a gente estava vendo com uma celebridade aleatória? Perguntaram o que ela faria num apocalipse zumbi e a moça respondeu que ligaria para o governo e pediria o vírus, que eles enviassem pelos Correios, que ela comeria voluntariamente. Essa sou eu, sabe? Dessa vez, essa sou eu.
Carter acabou rindo de novo.
— OK.
— Mas estou ansiosa pelo nosso bebê. Vou te levar para fazer o exame no almoço, está bem?
Estava bem assim. Carter deu boa noite a ela e foi para o quarto principal, onde costumava dormir antes de Raina se mudar.
Tinha mais exames de gravidez na sua mochila e acabou fazendo mais dois, que comprovaram o primeiro.
Um bebê.
O que faria agora? Por quanto tempo podia não contar para Ella? Por que tudo aquilo estava acontecendo ao mesmo tempo?
De alguma forma, conseguiu dormir e acordou com café na cama.
— Raina... — Acabou sorrindo, ela estava entrando de roupão e com uma bandeja linda.
— Sinto muito ter dito que não te amo — Ela disse, fazendo Carter rir.
— Sei que não é verdade.
— Não é. Só estava muito bêbada, e bêbados mentem sim. Baby, você disse que fez um teste...?
— Eu fiz. Fiz outros dois ontem, antes de dormir.
Raina trouxe a bandeja para ela na cama e se sentou em seguida.
— Deram o mesmo resultado?
— Deram o mesmo resultado.
E um sorriso lindo surgiu naquele rosto! Era essa a reação que estava esperando quando contou. Raina veio para perto, beijou a sua testa, lhe guardou nos braços, a enchendo de carinhos.
— Então, você acha que temos mesmo o nosso bebê?
— Sim, é... acho que sim.
Foi assim que terminaram chorando antes das sete da manhã, num abraço longo, muito apertado e cheio de sentimentos diferentes.
Bem diferentes.
Notas da Autora sobre Água Rasa: Tessa Reis
Olá, todo mundo! Estamos bem por aqui?
O Capítulo 7 veio trazer para Carter um resultado do qual ela estava fugindo. Gravidez confirmada, agora ela precisa descobrir uma forma de ajustar suas duas vidas em uma só.
Curiosidade: todo mundo aí acha que a Raina sumariamente já desistiu de tudo? 👀
O próximo capítulo, "Zen", chega dia 12/2!
Grande beijo!
Tessa.
Sim, acho que Raina desistiu do namoro, por auto-preservação. Mas não desistiu da relação das duas, só mudou. Vejo um bebê muito amado com 3 mães chegando 🥰