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Água Rasa 8

Foto do escritor: Riesa EditoraRiesa Editora

Capa Água Rasa
Água Rasa

Zen

 

Se Ella contasse, ninguém acreditaria, mas a grande verdade é que se sentiu diferente assim que acordou naquela manhã.


Tentou raciocinar sobre o sentimento: devia ser porque era a sua primeira manhã, em cinco anos, acordando feito gente normal. Seu despertar do coma havia sido no meio da madrugada e altamente aterrorizante. Pensando agora, havia acordado antes, porque tinha o registro da voz de Carter. Precisava perguntar para ela se essa era uma memória real ou não, mas havia ouvido a voz dela e começado a tentar acordar. Mas era como se estivesse presa numa paralisia do sono ou algo assim. Era a única coisa com a qual conseguia comparar a sensação: sabia que estava dormindo e que precisava acordar, mas seu corpo não estava seguindo suas ordens.


Sob muito esforço, finalmente conseguiu abrir os olhos, e um sentimento de que algo muito ruim havia acontecido a invadiu completamente. Sua visão não estava plena, estava embaçada, como se seus olhos estivessem inchados. Tinha algum tipo de secreção deixando sua visão turva e, quando tentou levar a mão aos olhos para esfregar, seus braços não se moveram. Então olhou em volta e não fazia ideia de onde estava. Não havia ninguém por perto, apenas um bip que parecia estar dentro da sua cabeça de tão alto. Foi quando tentou se mover de qualquer forma e foi parar no chão.


A pancada a apagou momentaneamente. Tinha essa consciência e, quando acordou novamente, estava sendo colocada de volta na cama e havia sangue no seu campo de visão. Seria essa a sensação de nascer? Um feto inconsciente, vivendo em um conforto térmico e físico, sem qualquer preocupação, e, de repente, esse conforto era cortado de forma dramática: era puxado para um mundo completamente desconhecido de maneira assustadora. Foi assim que se sentiu. De repente, estava sozinha numa sala em que não conhecia ninguém e, até Carter aparecer, aquele momento fora o mais assustador de sua vida inteira. Mas sua esposa surgiu, e isso significava que estava segura.


Carter dizia ser Ella a protetora daquela relação, mas era apenas uma meia-verdade: sempre foram equivalentes, sempre se sentiram mais fortes quando estavam juntas. Ella havia precisado ser muito forte quando ainda era muito nova. A morte de seu pai a promoveu a chefe de família cedo demais, e a primeira vez, em muito tempo, que pôde se mostrar vulnerável foi quando começou a namorar Carter. Ela era a sua protetora. Era a pessoa com quem podia contar, a quem podia se mostrar frágil, cansada, a quem podia pedir ajuda sem nenhum julgamento. Confiavam uma na outra, e, quando a viu chegando depois do seu despertar, apenas soube que tudo ficaria bem.


Ainda que tudo estivesse complexo agora, iriam superar. E foi com essa energia que despertou naquela manhã.


Vieram lhe dar seu café da manhã, algum tipo de alimento intravenoso. Perguntou se podia tomar um pouco de água. Por algum motivo, sentia muita sede.


— É que você está desidratada também — Sky lhe informou. Ela era sua primeira atividade do dia. Ouviu que era a mais difícil também: era melhor fazer enquanto estivesse com a energia mais completa — Você viu a sua urina bem escura, não foi?


Afirmou. Tinha visto, sim. E, enquanto recebia o alimento na veia, Sky organizava os seus equipamentos.


— A boca seca, o nariz seco, tudo isso são sinais de desidratação. Você estava sendo hidratada, mas, antes, dormindo, você era quase...


Escreveu no iPad: “uma planta”.


Sky riu.


— Isso, uma planta. Mas agora a planta está acordada, se movendo, precisa de mais nutrientes.


E os olhos clarinhos de Ella Schafer estavam em cada movimento seu. Foi assim que ela notou algo diferente em Sky em relação ao dia anterior.


“Você dormiu pouco, não é?”


Sky sorriu ao ouvir. Ella era observadora, já havia notado isso.


— Dormi pouco, sim. Acabou que saí com uma amiga que estava precisando conversar. Cheguei tarde em casa e não consegui dormir muito bem.


“E sua amiga está bem?”, ela perguntou.


Apertou os lábios antes de responder, pensando um pouco.


— Eu não sei. Ela... é transplantada. Recebeu um coração novo quando era criança e, ontem, fez uma alusão a isso: disse que o coração dela nem dela é. Que realmente acredita que mudou depois disso e acabou dizendo também que o amor que sente agora sequer pertence a ela. Ela vai se separar. Não quer, mas é a coisa certa a fazer.


“Às vezes, as coisas certas são as mais difíceis.”


— Isso que eu disse para ela. Mas foi interessante ouvi-la falando, porque ela realmente acredita que não tem um coração próprio, que aquele amor não é dela, que é de outra pessoa. Ela estava bêbada quando disse tudo isso, mas acho que o que quis dizer é que não acredita que possa ser amada, já que tem o coração de outra pessoa dentro do corpo dela.


Pensando bem, talvez não devesse estar tendo esse tipo de conversa com Ella, sendo que era sobre Raina, mas, enfim. O caso é que não conseguia parar de pensar nela e em todas as coisas que disse enquanto jantavam. Raina era diferente. Diferente mesmo.


“Ela poderia conversar comigo sobre esse tipo de experiência. Me sinto esquisita, como se tivesse acabado de nascer. Não lembro de algumas sensações.”


Aquilo chamou sua atenção.


— Não lembra de algumas sensações...?


“Não lembrava de como era sentir a água quente na minha pele. E nem da sensação de abraçar a minha esposa. Os cheiros também parecem diferentes.”


Pensou um pouco mais sobre aquilo.


— Ella, nós tivemos uma pandemia em 2020.


Os olhos dela ficaram enormes. “PANDEMIA? PANDEMIA MESMO?”


— Pandemia mesmo. Foi um vírus novo, chamado coronavírus. Ele causa um monte de sintomas iguais e outros milhares de sintomas diferentes. Há pessoas que tiveram muitas mudanças sensoriais. Carter te isolou aqui dentro, você ficou segura, mas esses sintomas... O que quero dizer é que entramos numa era de sintomas sensoriais. Seu cérebro, com toda certeza, mudou nesse tempo todo. Achamos que você ficou protegida, mas, enfim. Você tomou as vacinas.


Em quanto tempo tivemos vacina?”


— Dez meses.


Mais daqueles olhos expressivos.


“Mas como? Uma vacina leva dez anos!”


— Foi como um apocalipse zumbi, sério, não consigo te explicar o tamanho de tudo. Milhões de pessoas morreram, milhares morriam todos os dias. Você vai ter tempo de entender tudo isso melhor, mas ficamos em isolamento. Todo mundo que podia ficar em casa, ficou. Porém, mesmo assim, os hospitais ficaram lotados, trabalhávamos até 20 horas por dia. Não posso te encher de informações, mas acho que essa vai ser bom você saber: Catherine Arnault-Schafer, a sua esposa, liderou a Schafer & Arnault no processo da vacina canadense. Vocês foram o primeiro laboratório a entregar uma vacina para este país.


Aquilo pegou Ella de muita surpresa. Seus olhos brilharam.


“Carter liderou...?”


— Acho que ela vai gostar de te contar como tudo isso aconteceu — Acabou sorrindo — Mas vocês receberam condecorações de órgãos importantes, inclusive do Governo Federal. Hum... você acabou de obter muitas informações de mim. Isso quer dizer que precisa me pagar em esforço na nossa sessão, tudo bem?


Ela sorriu. Tudo bem, podia ser assim.


— Ella, vai doer, mas você precisa aguentar o máximo que conseguir, OK?


A promessa da dor realmente se concretizou. Seu corpo estava frágil, os poucos músculos que lhe restavam estavam endurecidos, suas articulações doíam mais do que qualquer coisa, e cada exercício parecia um tipo de tortura diferente. Mas se esforçou, suportou tudo o que conseguiu e, mesmo sentindo muita dor, terminou cada uma das suas séries, ainda que mal conseguisse segurar o iPad em seguida.


— É ácido lático, está tudo bem. Você foi muito bem, Ella, muito mesmo!


Depois da sessão de tortura, sua rotina seguiu com o banho, mais uma sessão de alimentação e ficou se perguntando quando Carter viria. Sua mãe apareceu durante o almoço e explicou algumas coisas.


— Ela precisa trabalhar, filha. É CEO da empresa agora que... — Hesitou. Ella notou.


“O quê? Pode me falar, não irei surtar.”


Nia analisou a situação por um momento.


— É que seu sogro faleceu, querida.


Mais daquele rosto expressivo, e Ella teve que respirar fundo. Vincent a atormentava como um dementador, mas era o pai da mulher que amava. E havia sido seu mentor. O melhor que teve. Seus olhos se encheram.


“O que aconteceu com o Vincent?”


Nia limpou as lágrimas que escaparam daqueles olhos, contra a vontade dela, muito claramente. Ella não queria parecer abalada, mas não conseguiu.


— Respira, vamos. Já faz um bom tempo. Carter já está bem, tudo isso já passou, meu amor. Tivemos uma pandemia. Vincent foi vítima dessa pandemia, que foi bem cruel com os mais velhos. Fiquei um ano sem sair de casa, filha. Não podia nem vir aqui te ver. A única que vinha era a Carter, porque, se a Grace viesse, podia se contaminar e me contaminar.


Ella ficou quieta por um instante, se acalmando. Fechou os olhos, puxou fundo o ar e soltou: zen. Era um hack mental para se acalmar. Repetiu a palavra mentalmente e funcionou. Então respirou fundo de novo e raciocinou sobre aquela informação. Pegou o iPad e escreveu:


“Então está me dizendo que a Carter é CEO sozinha, que ficou sozinha durante esse apocalipse zumbi e ainda perdeu o pai?”


— Sim, é... é isso. Ella, por tudo o que aconteceu, você precisa ser mais compreensiva sobre algumas coisas que ocorreram enquanto estava em coma. Nada foi fácil para a Carter. Ela perdeu o pai, estava longe da mãe, longe da gente e fazia questão de vir aqui te ver ao menos uma vez por semana, pra você não se sentir sozinha. Carter sempre acreditou que uma parte de você podia perceber as coisas. Ninguém nunca tirou isso da cabeça dela. Nisso de vir, ir para a sede da empresa, entrar nos laboratórios, ela sofreu três infecções. A primeira foi muito violenta, ela ficou mal, precisou ser internada, foi... um desespero. Sahara chorava de partir qualquer coração e, depois, colocava a máscara de volta e seguia trabalhando nos laboratórios. Elas se provaram muito. Você vai sentir orgulho de tudo o que fizeram.


Era como um quebra-cabeça de 13.200 peças que Ella havia comprado uma vez e nunca chegou a vinte e cinco por cento montado. Sem dúvida nenhuma, Carter havia passado por muita coisa, muito mais do que podia imaginar.


Seguiu sua agenda extensa, tão extensa que estava até se sentindo trabalhando de tantos compromissos, mas voltou para o quarto antes do final da tarde e ficou bem sozinha. Foi por uma faixa curta de tempo, mas, quando não se pode levantar e andar por aí, a sensação é estranha.


Leu algumas páginas do seu livro, ouviu um pouco de música, montou um quebra-cabeça de 300 peças — estava entre as coisas que Carter havia trazido no dia anterior. Um ultraje, tal quebra-cabeça. Ella costumava montar gigantes, mas OK.


E, pouco depois que anoiteceu, sua esposa finalmente apareceu.


Toda de preto: minissaia, blusa, terninho italiano por cima, os cabelos soltos, o rosto cansado e um pouco preocupado. Entrou, e Ella ganhou um selinho imediatamente, o que a fez sorrir.


— Melhor — Conseguiu dizer, muito baixinho, quase inaudível. Estava notado que, uma palavra por vez, conseguia dizer antes de sua voz sumir.

— Melhor com beijinhos, eu sei — Carter a beijou um pouco mais, sobre o nariz, na pálpebra e, por último, beijou a sua mão, carinhosamente — Não fale com a sua voz, precisa guardar para quando estiver mais forte. Linda, eu trouxe meu café da tarde. Posso tomar aqui, enquanto você me conta do seu dia?


Claro que ela podia.


E, enquanto Carter tomava café ao seu lado, Ella contou, com a voz do iPad, como havia sido o seu primeiro dia de reabilitação.


“Ela é uma torturadora de primeiro grau, mas, com toda certeza, sabe o que está fazendo...” Foi o que contou sobre Sky, fazendo Carter rir demais.


“A terapeuta é legal. Nunca fiz terapia, mas você sempre disse que eu deveria.”


— Eu faço, toda semana. E, quando tudo aconteceu, fazia todo dia.

— Mesmo? — Usou sua palavra da vez. Agora, só conseguiria dizer outra em meia hora, muito provavelmente. Estava anotando tudo isso para ter uma ideia melhor da sua condição.

— Mesmo — Carter deixou outro beijinho nela. Sabia que ela não devia falar, mas cada palavra dita também era um alívio — Eu tive muitas paranóias, Ella. A intervenção com a terapia constante aconteceu quando eu não conseguia te deixar aqui. Tive um monte de medos diferentes: o que podiam fazer com você dormindo, o que aconteceria se você precisasse de algo e ninguém visse. Não confiava em ninguém, queria ficar aqui nesse sofá para sempre. Por isso ele é tão bom, foi comprado especificamente pra mim — Contou, sorrindo — Você sabe que é vigiada, não sabe? Coloquei umas sete câmeras nesse quarto. Podemos remover metade agora. Desculpe não ter contado antes.


“As câmeras podem ficar. Me sinto protegida assim. Elas têm microfone também?”


Sorriso de Carter.


— Eu posso te ouvir e consigo abrir o microfone pelo celular. É como uma linha direta. Quando não conseguia vir, falava com você pelas câmeras.


Então, Ella alongou o olhar sobre si novamente.


“Eu sinto muito pelo seu pai.”


Seus olhos se encheram imediatamente. Os de Ella também. Mas as duas se controlaram, e então abriu um sorriso.


Estava sendo um dia difícil. Já tinha sorrido muito, pois o escritório estava em polvorosa com a notícia do despertar de Ella, e, ao mesmo tempo, havia tido picos de felicidade por causa da gravidez. Porém, também havia chorado muito, por ambos os motivos anteriores. Ainda estava muito emotiva com tudo, e a gravidez era algo ambíguo, que causava tipos paradoxais de emoções.


— Você já soube dessa parte, então…?


“Minha mãe me contou. Eu sinto muito, meu amor. Por isso ter acontecido. Por eu não estar aqui com você quando aconteceu.”


— Ah, meu amor, você estava. Eu fiquei três dias aqui, sentada na sua porta, porque não podia entrar. Alguém já esclareceu sobre a pandemia...?


“Sky me falou sobre. Mas é difícil imaginar como foi.”


— Você vai poder ver vídeos depois. Os vídeos mais assustadores da nossa história, com toda certeza — Limpou os olhos, não deixando as lágrimas caírem — Mas enterrei meu pai em horas. Nada podia demorar. E vim pra cá, ficar perto de você. Trabalhei do corredor, porque também não podíamos ficar sem trabalhar.


“Me contaram que a nossa vacina foi a primeira do país.”


Outro sorriso.


— Foi mesmo. Mas nem era uma competição de mercado, era questão de sobrevivência das pessoas. Todo mundo fez o máximo que pôde. No mundo inteiro, mesmo. As pesquisas eram amplamente compartilhadas, praticamente em tempo real. Grupos de cientistas trabalhando juntos, trocando informações. Foi algo único.

— E, para minha surpresa, Sahara é uma grande cientista mesmo — Disse, fazendo Ella rir.


“Ela é a nerd dentre nós. Só me pegou de surpresa que tenha ido para o campo.”


— Ela é microbiologista, eu sou engenheira ambiental, uma de nós precisava liderar os cientistas. Ela era muito melhor do que eu nisso. Daí, ela ficou com os cientistas e eu, com os acionistas, investidores e políticos.


“Você sofreu muita pressão, não sofreu?”


— Ah, muita. O governador me ligava diariamente às sete da manhã, pedindo reportes. Atuamos em conjunto com as universidades e esses professores importantes também me ligavam. Uma vez, até o primeiro-ministro me ligou. Achei que fosse um trote e desliguei — Contou, fazendo Ella rir demais, tanto que acabou tossindo — Ella? Ella! — Largou o seu lanche e foi apoiá-la — Respira, respira, isso, está vendo como é perigoso emitir qualquer som?!


“A vida cruel de quem não pode rir”, ela escreveu depois que conseguiu parar de tossir.


— Você vai poder, em breve. Fez essa terapia hoje também?


Ela afirmou. Havia feito terapia pulmonar, passado com uma fonoaudióloga e mais uns cinco especialistas. E havia sido apenas o primeiro dia. Então, perguntou para Carter como ela estava.


“Você parece triste hoje.”


— Eu... Não, não é isso, não — Negou, sorrindo — É que... ontem foi exaustivo, não é? Eu dormi pouco e não consegui dormir muito bem essa noite também.

— Dor? — Ella conseguiu dizer.

— É, foi a dor — foi uma meia-verdade — e a euforia. Eu tinha uma reunião muito cedo, mas fiquei na câmera te esperando acordar. Queria ter certeza. Isso é invasivo, não é? Vou reduzir as câmeras — Disse, fazendo sua esposa rir de novo.


“Não precisa. Eu gostei de saber que estamos conectadas de alguma maneira. Sei que você agora é CEO e que trabalha demais, mas você pode vir me ver todos os dias, não pode?”


— Linda, é claro que sim. Todo dia, duas vezes ao dia, se eu conseguir e a qualquer momento que você precisar de mim. Eu vinha aqui todos os dias antes, sempre vim todos os dias.


“Eu dei muito trabalho.”


— Ah, isso sempre. Me diga quando você não deu muito trabalho, Ella Schafer? — Sorriu, arrancando um sorriso dela também — Eu venho todos os dias, OK?


Ela lhe olhou nos olhos e a puxou contra o corpo. Carter já sabia exatamente o que ela queria e, ainda bem, era o mesmo que precisava. Deitou-se na cama com ela, guardando-a nos braços, sentindo-a se aconchegar pelo seu corpo.


Daí, ela pegou o iPad.


“Fica até eu dormir?”


Cheirou os cabelos dela longamente, apertando-a muito nos braços.


— Fico.


E assim, Carter ficou até Ella pegar no sono. Era horário de bebê dormir, não era nem oito da noite ainda, mas foi informada de que isso seria comum. Sua esposa ainda estava muito fraca, havia acordado muito cedo. Era bom que dormisse igual a uma bebê mesmo. Daí, moveu-se devagar, transferindo-a para o travesseiro, encheu-a de beijinhos e, finalmente, saiu do quarto.


Conversou com a líder de equipe, que lhe passou um breve reporte sobre aquele primeiro dia de reabilitação.


— Ela é forte mesmo. Suportou a sessão de fisioterapia sem reclamar, mesmo sentindo dor. Também fez a fisio pulmonar, passou com a fonoaudióloga e fez a primeira sessão de terapia, se mostrando muito mais aberta do que o esperado. Achamos que ela traria a confusão mental de agora como principal assunto, mas ela quer entender questões antigas sobre si mesma também. Ella Schafer foi colaborativa o tempo inteiro, de verdade.


Bem, aquele primeiro reporte foi bem melhor do que Carter esperava. Ainda ficou um pouco mais, observando Ella dormir através do vidro. A sensação era incrível e preocupante, tudo ao mesmo tempo. Ela estava bem, equilibrada. Não sabia o quanto isso seria ruim quando tivesse que contar sobre Raina. Sabia que não podia contar naquele momento, mas uma parte de si gostaria de apenas dizer tudo de uma vez, só para descobrir que reação ela teria e para ver se aquele nó por dentro poderia se desfazer. Mas não era prioridade agora. A prioridade era sua esposa, o bem-estar dela, não o seu.


Bem, agora que Ella estava em sono profundo, era melhor ir pra casa. Saiu para o estacionamento e cruzou com Sky. Ela estava saindo também.


— Ei, você! — Sky veio abraçá-la imediatamente — Como você está hoje?


Carter se recostou na BMW Coupé que dirigia.


— Eu fiz todos os exames possíveis. Todos eles disseram o mesmo: estou grávida.

— Mesmo? Carter! — Abraçou-a de novo, carinhosamente — Ah, eu sei que isso é muito difícil, mas é uma boa notícia também, não é?


Carter já estava lagrimando de novo.


— É, claro que é. Eu queria isso, queria que desse certo. Mas sei que não foi o melhor momento. Não sei como a Ella vai reagir, quando vou poder conversar sobre tudo com ela. Isso está me matando.

— Eu sei. Nem consigo imaginar o que isso está te causando. Ficou tudo bem entre você e a Raina ontem?

— Sim. Não. Não sei muito bem. Estamos separadas. Conversamos hoje no almoço, depois que fiz mais um exame que deu positivo, e decidimos ser melhor assim, desde já. Ela está triste com isso. Eu também estou. Me sinto péssima porque já não estávamos bem há uns meses. Não transamos há quase três meses e essa é boa parte do tempo que estamos morando juntas. Isso deveria ter sido um sinal de alerta. Eu devia ter terminado antes, não ter dado um próximo passo tão importante.

— Carter, eu tenho dois pais. Meus pais se separaram quando a minha mãe estava grávida e ela se casou com o meu padrasto não muito tempo depois. Relações se desfazem e se refazem, é parte da vida.

— Esse é um sonho mais da Ella do que meu, e eu entreguei para outra pessoa, entende? Eu não sei o que estava passando pela minha cabeça.

— Ah, eu sei: confusão, medo, estresse, dor. Carter, sabe as coisas da pandemia? Como as pessoas estavam reagindo a determinadas situações? A gente desconsiderava, porque ninguém estava no seu estado mental confortável. Você passou cinco anos em desconforto mental e ainda lidou com uma pandemia muito de perto, com muitas responsabilidades. O seu estado mental não estava confortável, a Ella vai entender isso.


Carter respirou fundo.


— Você acha que em um mês ela vai estar forte o suficiente para a gente ter esse tipo de conversa?

— Eu aposto que sim. Ela foi muito bem hoje, está mentalmente estável, focada na própria recuperação. Apenas se cuide neste período, está bem?


Achava que podia fazer isso. Despediram-se com um longo abraço, entrou no carro e partiu.

Carter sentia saudades infinitas do Rio de Janeiro e já fazia mais de seis anos que não ia até lá. Se afastar de Ella, fosse por alguns dias, era algo totalmente incabível. Nem viagens de trabalho dentro do Canadá aceitava fazer. Essa parte toda fazia por conferências pela internet ou pedia para Sahara ir. Mas, ainda sobre o Rio, sentia falta de tudo. Falta de ouvir português, saudades do calor, dos seus dias de praia. Mas existia algo que aprendeu a admirar na gelada Montreal, especialmente naquele horário: a arquitetura europeia, de alguma maneira, ficava mais bonita à noite. A influência francesa concedia à cidade um charme à parte. Lembrava Paris, uma de suas cidades preferidas no mundo. Gostava de ver a arquitetura, gostava do idioma que não dominava, mas compreendia.


E dirigir era algo que havia acontecido para Carter apenas depois do acidente.


Tinha realmente conseguido tirar a habilitação depois que Ella assumiu tal projeto, na segunda vez que pôde passar tempo no Rio. Havia dirigido muito ao lado dela, ouvindo suas orientações, ficando mais segura, e assim, finalmente conseguiu ser aprovada no DETRAN! Mas, como Ella sempre estava ao seu lado e dirigia muito melhor, isso ainda era algo que sua esposa fazia mais. Claro que tudo mudou com o acidente.


Carter tinha um tempo muito reduzido, ficava correndo da empresa para o hospital o tempo todo — de Uber, de táxi, de motorista particular — e, de repente, apenas decidiu que aquilo era ridículo. Principalmente quando chegou a pandemia. Podia, sim, dirigir, e do momento que decidiu por isso, apenas se enfiou na BMW de Ella e se convenceu de que, se não batesse por uma semana inteira, era porque conseguia fazer aquilo sozinha. Bem, não bateu nenhuma vez naqueles cinco anos e acabou descobrindo um prazer que não fazia ideia de que podia ser seu. Amava dirigir. Amava fazer isso ouvindo suas músicas e, em todas as vezes que saiu muito abalada daquele hospital, conseguiu se acalmar no caminho de casa apenas dirigindo. Era uma forma também de se sentir perto de Ella, já que uma das coisas que mais adoravam fazer juntas, em Montreal ou no Rio de Janeiro, era dirigir por aí, tarde da noite, procurando algum lugar diferente para comer.


Chegou ao seu prédio e, no elevador, foi parada por algumas vizinhas, o que era bem incomum porque, de modo geral, os canadenses eram super discretos e talvez fossem também um dos povos mais gentis que Carter já conhecera. Mas suas vizinhas haviam ouvido falar que Ella acordou e queriam saber se era verdade. Haviam visto no Instagram.


— No Instagram...?

— Sim! E no Twitter também. Ficamos imaginando se era a sua esposa mesmo.


Explicou que era, que ela estava bem, mas não entendeu como algo assim havia vazado. Com certeza, não foi do hospital, e sim da empresa. Carter estava ignorando as mensagens que sabia que eram de jornalistas, mas claro que algo assim não passaria despercebido.


Entrou em casa e Raina estava no sofá, assistindo algo na TV.


— Ei...! — Ela se levantou, veio lhe receber na porta, carinhosamente, e deixou um beijo em sua testa — Pedi jantar para nós duas, deve estar chegando em alguns minutos. Quer ir para o banho primeiro?


Carter quis. Devolveu o carinho nela e entrou no banho, bem quente, para ver se relaxava um pouco. Daí, se trocou, colocou seu moletom de dormir e, quando voltou para a sala, a mesa já estava arrumada.


— Pedi aquele macarrão que você gosta.

— Você é sempre cuidadosa comigo — Deixou outro carinho nela antes de se sentar — Obrigada pelo jantar.

— Não por isso. Foi tudo bem no hospital?

— Tudo bem. Aparentemente, o dia 1 da reabilitação foi cumprido com sucesso.

— Nada que não se espere de Ella Schafer — Ela comentou, sorrindo — A imprensa está ligando sem parar.

— Sim, hoje foi bem insano. Acha que resolve se eu fizer uma nota? Eu não queria aparecer.

— Acho que podemos resolver com uma nota, sim, cuido disso amanhã. Acabei não indo para o escritório hoje. Você passou o dia todo em reunião, não é?

— Sim, só saí pra gente almoçar.

— Eu decidi só assinar alguns documentos e ir até a corretora para ver o apartamento de baixo — Ela contou, enquanto comiam — Tem um contrato de seis meses que acho que é o ideal, daí posso te ajudar mais de perto enquanto a Ella não vem pra casa.


Raina parecia tranquila. Depois da explosão da noite passada, ela parecia muito calma e apenas bem feliz pelo bebê. Sempre havia sido complexo fazer uma leitura sobre ela. Raina era alguém que escondia suas emoções muito bem, uma das habilidades que a fazia uma ótima advogada.


A relação delas havia sido meio confusa desde o começo. Ela se aproximou como uma amiga, com quem Carter podia trocar algumas de suas angústias, porque havia passado por algo semelhante, e em algum momento acabaram dormindo juntas. Carter estava sem sexo há três anos, tinha sido convidada por Raina para jantarem e, de alguma maneira, haviam acabado transando no carro.


A relação continuou na amizade. Eram altamente profissionais na empresa, ninguém sabia o que estava acontecendo, e elas acabaram transando no carro mais algumas vezes. Levaram uns seis meses até transarem numa cama, e um ano até decidirem que aquilo deveria ser um namoro. Seguiram discretas. Nada de fotos públicas e nem de declarações. Quando estavam juntas, era bom, e era leve também. Carter sentia que conseguia levar uma vida minimamente normal quando Raina estava do seu lado. Então, haviam sido flagradas num restaurante por um dos acionistas, aí sentiu que o mínimo que podia fazer era assumir que estava com Raina. Já pedia muito para ela, para não lhe dar nem o mínimo, que era ao menos um pouco de normalidade.


Há seis meses, decidiram morar juntas, pelo simples motivo de que o contrato de aluguel dela havia finalizado. E, há três, quando Carter teve seu diagnóstico mais duro, veio a ideia do bebê.


Era essa história que precisaria contar para Ella em breve. E tanto Carter quanto Raina sabiam que não eram uma história de amor, eram uma história de apoio.


Terminaram o jantar, subiram cada uma para um quarto, mas Carter sentiu um pouco. Deu uma hiperventilada do nada, fechou os olhos e os braços de Raina a envolveram com muito carinho.


— Zen — Não era apenas uma palavra, era um código de acesso para a mente de Carter entrar num estado melhor de calma — Respira, vamos, está tudo bem. Fica tranquila, está tudo bem. Escuta, temos a nossa primeira consulta amanhã, antes de a gente entrar no trabalho. Dorme cedo, descansa, cuida de você, está bem?


Concordou e meditou antes de dormir. Precisava cuidar de si mesma. Precisava cuidar daquele bebê. Mas não conseguiu dormir imediatamente, não antes de checar a câmera de segurança para ver como Ella estava.


Tudo parecia bem. Ela parecia bem.


Um mês.


Em um mês, poderiam conversar. Era isso.


No dia seguinte, Carter e Raina foram para a primeira consulta com uma obstetra, enquanto Ella acordou antes do horário previsto. Ainda estava escuro lá fora e meditou por meia hora. Não, nunca havia meditado antes até conhecer Carter no Rio de Janeiro. Sempre fora agitada demais para conseguir ficar parada por tanto tempo, mas quando começou a frequentar o jiu-jitsu com ela, descobriu que... eles meditavam. Ao final da aula, todos os alunos se sentavam no tatame e meditavam por dez minutos. Então, começou a estudar sobre e percebeu uma melhora na agitação mental depois que adotou a meditação.


De tudo o que sabia que precisava fazer, tinha certeza de que o mais difícil era encontrar algum lugar de calma mental dentro da sua mente, que seguia bagunçada.


Havia conseguido dormir, mas assim que acordou, ficou maluca por uma conexão com a internet. Olhou as redes disponíveis, tentou senhas diversas no iPad, não entendeu bem o que estava fazendo. Queria mais informações, claro. Queria saber mais do que tinham lhe contado no dia anterior e sabia que não podia ser assim. Porém, com aquilo tudo, tinha algo mais que estava perturbando: as imagens que não sabia de onde vinham, que não tinha certeza se eram reais ou não. E os cinco anos. Coube uma pandemia em cinco anos, e Carter havia ficado sozinha. O que faria se ficasse cinco anos sem ela?


“Zen”, disse a si mesma mentalmente. Era o gatilho para entrar em meditação profunda, uma técnica que aprendeu no jiu-jitsu. Zen, e todos os pensamentos sumiam. Zen, e sua mente ficava branca. Zen, e a internet não importava. Os acontecimentos dos cinco anos? Também não. As memórias que desconhecia desapareciam. Ella entenderia tudo, mas primeiro precisava sair dali.


Então, do meio da sua mente branca, surgiu uma memória que sabia que era real: a última vez que havia falado com Vicent Arnault.


Havia sido no casamento delas, claro. Ele lhe abraçara longamente e chorou. Ver aquele homem tão duro, de repente, chorando tanto, fez Ella acabar chorando também.


— Carter é mais velha que você, e quando ela nasceu, seu pai disse que queria um menino, para nos tornarmos uma família só. Você me acha retrógrado, mas era o seu pai que pensava que só dava para unir as famílias assim — Ele comentou, fazendo Ella rir.

— Ele era antiquado.

— Era um antiquado. Mas agora, oficialmente, somos uma família só. Vocês estão lindas, se amam tanto que dá mesmo para ver. Eu nunca vi outro casal assim, que desse para ver tão claramente. Dada a personalidade da minha filha, eu nem sabia se ela se casaria um dia, Ella, mas aqui estamos. Catherine casada com uma das mulheres que eu mais admiro nesse mundo.


Ella lagrimou e o abraçou de novo.


— Por que está sendo gentil comigo? Achei que você me odiava!


Ele riu.


— Você só é muito teimosa! Mas é extremamente habilidosa para os negócios, forte, inteligente. E trouxe minha filha para perto de mim outra vez. Sei que você vai cuidar da Carter, Ella, mas precisa me prometer que vai deixá-la cuidar de você também.


Afirmou, deixaria.


— Eu amo você. Quando minha filha ficou longe de mim, você ocupou o lugar deixado por ela na minha vida. Mesmo me dando muita dor de cabeça. Mas é isso que os filhos causam, não é? Principalmente as filhas. Agora, eu tenho duas.


Havia dito que o amava também. E tinha se despedido dele. Ao menos, tinham se despedido. A memória desapareceu na mente branca.


Meia hora depois, abriu aqueles olhos claros. Pronta. Estava pronta para o seu dia.


E às oito, quando Sky chegou para sua primeira terapia do dia, Ella estava, inclusive, de banho tomado. Havia pedido para tomar banho a uma das enfermeiras, não queria se sentir num hospital, e sim num projeto. O projeto mais importante da sua vida, que era conseguir voltar para si mesma.


— Mas, já?! Pronta pra gente começar?


Abriu um sorriso.


“Quanto mais cedo eu começar, mais rápido saio daqui, não é?”


— Você está mesmo decidida a focar na sua reabilitação.


“Deixei minha esposa sozinha por cinco anos, minha irmã se tornou uma adulta, perdi meu sogro, minha empresa aparentemente cresceu. Preciso estar lá fora, já perdi coisas demais. E precisa ser rápido.”


E poucas coisas no mundo podem ser tão poderosas quanto alguém realmente determinado.


Zen.


Era hora de progredir.


 

Notas da Autora sobre Água Rasa: Tessa Reis


Olá, todo mundo! Tudo bem por aqui?


O Capítulo 8 nos trouxe a perspectiva de Ella ao acordar, além de algumas informações externas sobre o que aconteceu enquanto ela estava dormindo. Também vimos sua mente agitada, tentando processar tudo, e a necessidade de encontrar calma para que sua recuperação realmente comece.


E falando em recuperação... Prontas para acompanhar Ella Schafer em reabilitação?


Nos vemos no dia 17/2!


Grande beijo!

Tessa.


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