Ferida Aberta
Melbourne, amanhã em relação à Nova York.
Após terem dormido tanto no voo, Zoe achou que elas não conseguiriam dormir por conta do jet lag. Então, pediram jantar no quarto, deixaram a TV ligada em algo aleatório, Reira falou com algumas pessoas, tentando entender como estavam as coisas. Os pais de Sora e Gael chegariam em algumas horas, o funeral estava pronto, seria logo pela manhã. Zoe perguntou se ela não iria ligar para Nina, e uma dúvida enorme ficou pairando pelo rosto de sua noiva, de um lado a outro, tão clara que dava mesmo para ver.
— É melhor não. Ela sabe que eu estou aqui. E... ela deve estar ocupada.
Zoe a olhava. Respirou fundo e se aproximou dela na cama, puxando-a para si, abraçando-a por trás.
— Sexy, é tão difícil assim falar com ela?
Reira respirou fundo e se deitou, enrodilhando-se em si mesma, mas buscando o corpo de Zoe, deitando a cabeça no colo dela. Zoe a cheirou um pouquinho e correu os dedos pela cervical dela, delicadamente. Reira fechou os olhos, sentindo aquele carinho.
— É... Na verdade, é difícil mesmo. A gente não sabe muito bem como... iniciar conversas. Estamos tratando disso na terapia. As terapeutas sugeriram que fizéssemos algo juntas, algo que não fosse necessário... inícios. Alguma coisa que já viesse iniciada. E tivemos a ideia das aulas de dança, porque ela faz um script antes de cada aula e apenas... começamos. Sem ter que iniciar conversas necessariamente.
Zoe corria os dedos pelo meio dos cabelos dela.
— Reira, o que você sente por ela? Ainda tem muita coisa ruim?
— O mais interessante é que acho que não. Eu não a odeio, Zoe. Já odiei muito quando era mais nova, mas hoje, compreendo a situação de maneira real, nada do que aconteceu é culpa dela. A Nina foi tão abandonada quanto eu e em condições piores.
Continuou os carinhos. Reira estava há quase um ano na terapia e, realmente, estava muito mais aberta. A própria Zoe também estava, o relacionamento caminhava muito bem agora que ambas estavam mais dispostas a conversar sem barreiras.
— Me conta algo sobre ela.
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa, amor.
Reira pensou um pouquinho. E apenas começou a falar.
— A primeira vez que eu a vi, ela estava surfando — Contou e um pequeno sorriso surgiu — Ela tinha onze anos e estava surfando. Minha mãe me levou para a Costa Rica, queria que a gente se aproximasse. Ela morava num lugar... é uma fruta... Tamarindo. Minha mãe se aproximou da mãe dela, que tinha um restaurante, chama... É um tipo de restaurante familiar, chamam de sodas na Costa Rica. E lembro perfeitamente da comida, porque é uma das melhores que já provei na minha vida até hoje. A mãe dela tinha se casado, mas só tinha a Nina. Ficamos uns dias e foi bom. Não muitas palavras, ela só falava espanhol, eu só falava inglês e japonês, mas foi bom. Então, quando nos reencontramos na adolescência, ela já falava inglês e foi muito ruim. Muito ódio, muitas ofensas, eu senti que ela estava invadindo os meus limites. Lembro da vez que... — Os olhos se encheram — Nós brigamos de verdade. Ela não me machucou, poderia, eu não teria como me defender, mas ela não avançou desse jeito, só me arrastou para fora da festa onde estávamos e me disse muitas coisas. Lembro de ter ouvido tudo e tentado buscar dentro de mim, aquela primeira boa sensação que tive com ela, na praia de Tamarindo, enquanto ela surfava. Ela tentou me ensinar, foi dócil, não falávamos a mesma língua, não foi necessário. E eu acabei dizendo que era muito melhor nessa época, quando a gente não era capaz de se comunicar. Ela chorou por horas sem parar, eu tive que levá-la em casa porque ela não parava e eu nunca entendi.
Silêncio. Carinhos.
— Você nunca perguntou?
— Ficamos muito tempo sem nos falar desde então. Fomos para a mesma faculdade, mas não havia diálogo. Eu mudava de caminho quando a via por perto. Não queria mais sentir a ansiedade que ela me causava. Então, depois da formatura, acabamos no mesmo voo. Ela vindo para Melbourne, eu para Tóquio. Quase quatorze horas de voo, eu acho, até a conexão onde mudaríamos de avião, cada uma para o seu destino. Ela pediu para mudar de poltrona e se sentou do meu lado. Tentou falar comigo.
— Funcionou?
Ela lagrimou.
— Ela me disse muitas coisas, mas eu falei muito pouco. Dormi a maior parte do tempo, fingi que estava dormindo, na verdade. Foi infantil da minha parte. Daí ela disse que tudo bem, eu não precisava dizer nada, ela só queria falar e disse que voltaria para a poltrona dela. Eu não deixei. Pedi para ela ficar. Ficamos em silêncio, mas lado a lado o voo inteiro. Segurei na mão dela o tempo todo. De alguma forma, tocá-la sempre... me acalmou.
— Ela é sua irmã mais velha.
— Ela é. Não foi ruim. Eu não a odeio, Zoe, mas não sei se consigo amá-la. E ela nunca me fez nada, sabe? Os sentimentos ruins que criei, criei sozinha. Porque... — Mais lágrimas caindo — Senti muito quando o Rey foi embora. Porque o Cruz claramente se dava melhor com ela, eles falavam a mesma língua, tinham os mesmos interesses, viajavam juntos para lugares que eu queria ir, mas dizia o contrário. Depois de tanto ódio, ela passou a retribuir, a tentar me machucar, e a Nina era boa nisso. Me tornei pior com ela. Acho que ela me odeia.
— Ainda hoje?
— Acho que... ela me tolera, mas eu a machuquei muito.
— Mas está aqui para não deixar que ninguém a machuque. Você veio para isso, não?
Zoe tinha um ponto. Ela geralmente sempre tinha.
— Guapa... será que ela me quer aqui?
Zoe curvou-se sobre ela e a beijou, carinhosamente, deitando-se por trás de Reira, a guardando nos seus braços assim, se grudando inteira nela.
— Vamos descobrir em breve. E eu estou muito ansiosa para conhecer a sua irmã — Disse, abrindo um sorriso.
Ela olhou para trás, ficando um pouquinho mais animada.
— Mesmo?
— Mesmo.
Acabaram dormindo depois do jantar. Realmente estavam muito cansadas, mas quando Zoe acordou, ouviu sua noiva chorando no banheiro, tentando não fazer barulho. Foi até ela, perguntou se podia entrar, a encontrou sentada num cantinho e a colocou no colo; ela podia chorar, não era um problema, mas tinham hora para sair. Reira concordou em ir para o banho, depois, checou algumas coisas no celular. Zoe ficou no banho um pouco mais e, quando saiu, sua noiva já estava vestida. Minissaia preta, blazer da mesma cor, manga longa, com duas filas de botões, todos fechados, cinto afivelado, marcando a cintura, saltos, cabelos soltos, toda de Dior. Linda. Sempre linda. Deixou um beijinho nela e foi se vestir também, toda de preto, calça de alfaiataria, blusa muito bem ajustada, extremamente elegante, terninho italiano por cima, saltos, cabelos presos num coque baixo, a boss girl muito em dia, muito obrigada. Reira sorriu. Era por isso e por um tanto mais de coisas que era tão apaixonada por ela.
— Pronta, wifey? — Zoe pegou a sua mão.
— Pronta, guapa.
Desceram, mas Reira não conseguiu tomar café. Estava nervosa, enjoada, Zoe não quis insistir.
— Meu pai está atrasado, perdeu a conexão em Doha.
Ela ficou ainda mais nervosa por conta disso. O motorista estava esperando; dirigia na mão inglesa na Austrália. Reira até gostava, mas isso exigia uma atenção que ela não tinha à disposição naquele momento. Foi ficando mais nervosa conforme se aproximavam, agarrando a mão de Zoe com firmeza, ficando gelada, lutando para não chorar mais, mas o beicinho surgia mesmo contra a vontade dela, e ela tinha que se segurar. Então, o motorista parou.
— É aqui, senhorita Kato.
Ela respirou fundo, apertou os lábios.
— Eles são budistas? — Zoe perguntou.
— Isso, mas ela era... xintoísta. Enfim, ela será cremada.
Reira olhou para dentro, reconhecendo os carros. A família de sua mãe era rigorosa até com esse tipo de coisa, usavam um tipo de carro específico sempre. Havia uma fila de BMWs e... nenhum Jaguar. Então, olhou para frente, mais abaixo na rua e encontrou um. Parado numa cafeteria.
— Você pode parar na cafeteria ali na frente?
— Ah, sim, claro.
— Você decidiu comer alguma coisa, meu amor?
— É que... aquele é o carro da Nina.
— Um... Jaguar?
— Eu comprei um F-Pace em Bogotá e ela um I-Pace aqui. Meio que... ao mesmo tempo.
— Uma coincidência.
— Isso.
O motorista parou e elas desceram. Mas daí, Reira não quis entrar.
— Mas, wifey...
— Só um instante, é que... Você está vendo a Nina? — Reira estava praticamente escondida numa pilastra, fora do campo de visão de quem estava dentro, chegava a ser engraçado. Mas daí, Zoe deu uma olhadinha e...
— Reira, ela está sozinha.
— Sozinha?
— Chorando sozinha.
Ela estava. Numa mesa ao fundo, de saltos, minissaia, blazer todo fechado, mas numa fileira reta de botões que ia até o colarinho dela, toda de preto, Dolce & Gabbana, com toda certeza. Os cabelos soltos, o corpo tremendo inteiro, um choro descontrolado.
— É ela, não é?
Reira olhou. Era ela.
Então, aconteceu a interação familiar mais esquisita que Zoe já tinha visto na vida. Vencendo, inclusive, aquela interação anterior entre Reira e James, consertando um cabo aleatório durante o festival em San Andrés.
Reira se alinhou novamente, se recompôs e entrou. Pediu três cafés no balcão, esperou ficarem prontos, deu outra olhadinha para Nina. Ela estava tão nervosa que não via nada ao redor. Cafés prontos, Reira levou ela mesma. Colocou a bandeja com os copos na mesa e sentou-se na frente de Nina, abruptamente, sem dizer nada. Ela se assustou, claro que se assustou, fez um som anasalado, puxando fundo a respiração, olhando alarmada para Reira, estancando o choro de repente. E eram, de fato, bem parecidas, e assim, frente a frente, ficavam mais parecidas ainda.
Nina controlou o choro, puxou fundo o nariz outra vez e piscou os olhos repetidamente. Recolheu as próprias mãos de sobre a mesa e as colocou no colo.
E então, disse o seguinte:
— Como está enxergando sem os óculos? — A piora na visão de Reira tinha se mostrado cada vez mais progressiva, o grau dela não estabilizava, e agora ela vivia de óculos de grau. Mas estava sem naquela manhã.
— Lentes de contato — Reira esclareceu, piscando os olhos repetidamente.
— Ah...!
Silêncio.
— Foi bom você ter tocado neste assunto — Reira disse, cruzando as pernas e empurrando um dos cafés para ela.
— Foi... bom?
— É, porque como estou de lentes, às vezes tenho que fazer isso aqui... — Disse Reira, olhando para o alto e revirando os olhos por um instante.
— Ah, para arrumar.
— Isso. Não quer dizer que eu esteja revirando os olhos para alguma coisa, só estou arrumando a lente.
Outro silêncio. Zoe quase riu; elas eram um desastre em iniciar assuntos, agora tinha compreendido completamente. Nina tinha acabado de perder a esposa, e a primeira coisa que Reira dizia para ela era sobre lentes de contato.
— Oi, Nina, meu nome é Zoe — Disse, estendendo a mão para ela, que Nina gentilmente pegou. Hum, pequenas tatuagens nos dedos, só algo que notou.
— Ah, essa é a minha noiva, Zoe Garbiñe — Reira emendou.
— Prazer, sou Nina Alvarez, sou... — Olhou para Reira — A gente é...
— Irmãs — Zoe se sentou. Que dificuldade daquelas duas em dizer a palavra — Sei que é redundante perguntar como você está, então irei pular essa pergunta. Mas se precisar de alguma coisa, qualquer uma que seja mesmo, estou aqui para isso, ok?
Ela lhe olhou com um olharzinho que Zoe conhecia bem. Eram muito parecidas MESMO. E aquele olhar era de surpresa e gratidão. Nina ficou grata em ouvir.
— Muito obrigada.
— Não por isso — Zoe se sentou — Então, Reira não conseguiu tomar café, você já comeu alguma coisa? Acho que vou pedir sanduíches.
— Ah, eu... eu ia pedir, mas acabou que... — O choro apenas voltou para ela.
— Tudo bem, eu peço para vocês — Zoe se levantou e foi até o balcão, deixando-as sozinhas mais uma vez.
Silêncio. Mais um.
— Você passou a noite com a Sora? — Reira perguntou, tomando um gole do seu café, delicadamente abrupta.
— Sim, conforme... a tradição budista. Mas os pais dela chegaram e... veio mais gente. Eu só... — Nina apertou os dedos, os olhos vermelhos, de quem já tinha chorado muito e não tinha dormido. E tinha sofrido. Além do que já era esperado que sofresse.
— Eles te destrataram?
— Como sempre. Foi meio... "nós já chegamos, você pode ir. Pela porta de serviço, se possível”. Daí, fui me trocar e devia voltar, mas parei lá na frente e... — Os olhos se encheram ainda mais.
Nada que Reira não esperasse.
— Pois bem, você vai voltar. Nina, você é a esposa, vai ocupar seu lugar de esposa.
— Eu não quero mais confusão, Reira.
— Não vai ter. Eu não vou permitir.
E aquela frase iluminou aquele rosto bonito, ao menos por um instante, Zoe pôde ver. Estava no balcão, mas estava atenta a elas duas; a cafeteria estava meio vazia.
— Eu achei que a Bryce estaria aqui com você — Reira disse.
— Ela... É que a sua tia...
— A sua sogra.
— A sua parente.
— A mãe da Sora, prossiga.
— Isso. Ela detesta a Bryce, ela estava comigo, mas... foi indicada a ela a porta de serviço mesmo.
— E ela foi?
— Não, você sabe como a Bryce é. E gerou mais confusão, Gael se ofendeu, ficou um clima pior, mas ela não foi embora. Mas foi agora cedo, por conta... das crianças.
— “As crianças” inclui o seu bebê?
Ela respirou muito fundo. E começou a chorar forte de novo. Chorou tentando não chorar, segurando firmemente o copo de café, tentando manter tudo por dentro, mas era demais, ela não conseguia. Zoe esperou que Reira se movesse, e viu outra batalha. Ela queria, mas não conseguia, ou não sabia o que fazer. Então, Reira Kato deu um gole no seu café.
— Beba o seu café, Nina — Disse firmemente.
— Como...?
— O seu café. É um americano, beba.
Ela bebeu. E isso refreou aquele choro de alguma maneira, se acalmou.
— Reira, eu não acredito que isso esteja acontecendo. Nem tenho certeza se está mesmo acontecendo, é como se... eu não estivesse aqui. Nós... não dormimos na noite antes do acidente. Passamos a madrugada juntas, conversando sobre muitas coisas. Então, me arrumei para trabalhar, a Sora também, tomamos café, um dia comum. Eu a deixei numa reunião e fui para o estúdio. Tudo... normal. Um dia comum como todos os outros. E agora, ela não está mais aqui. Nunca mais isso vai acontecer. E é como se... eu nunca mais na minha vida fosse ter outro dia comum. Porque tudo mudou.
Reira encheu os olhos; tinha doído ouvir. Nina estava com a ferida aberta e aquilo a atingia também, sempre havia sido assim. Tomou outro gole do seu café.
— Como... como ela está? A Sora? Você garantiu que...?
— Ela esteja bonita, sim. Ela ficou machucada. Quando a vi, estava muito machucada.
— E estava falando? Bryce me disse algo do tipo.
— Estava. Conversou comigo antes de ir para a cirurgia. Mas disseram que... é comum. Quando alguém sente que não tem mais tempo, dá um jeito de se manter em si, forja uma melhora. Eu fiquei com ela o tempo todo, é como se ela estivesse apenas dormindo. Ela estava incomodada pelas mudanças que a gravidez causou nela, agora parece que todas partiram. Era uma bobagem porque... — Parou um instante, Zoe estava de volta, com sanduíches — Obrigada, Zoe. Era bobagem porque ela estava mais linda do que nunca.
Zoe sentou-se, olhando para ela.
— Posso vê-la? Nós fizemos algumas reuniões juntas, mas confesso que não lembro exatamente do rosto dela.
— Sim, claro que sim — Nina pegou o celular, desbloqueou e buscou uma foto: as duas juntinhas, agarradas, sorrisos abertos. Nina de óculos escuros, cabelo de surfista naturalmente clareado para as pontas, e Sora muito bronzeada, os olhos angulados como os de Reira, uma vibe boa, fresca, uma praia linda. Elas pareciam tão felizes — Foi antes da gravidez. Uns meses antes.
— Nina, vocês estavam... no festival? — O La Calma del Mar Festival, Zoe reconheceu aquele lugar imediatamente.
Nina trocou um olhar com Reira.
— Estávamos, em San Andrés.
— E por que não me disse nada? — Reira não tinha essa informação.
— Você ia estar no palco, e... eu sabia que estava nervosa com a possibilidade de alguma coisa dar errado, não quis atrapalhar.
Silêncio. O vigésimo, provavelmente.
— Nina, eu também perdi alguém repentinamente. Alguém jovem, linda, que era um pedaço de mim — Zoe falou com ela.
— Ah, sim, Cali Ikes, não é? Vocês eram muito próximas, o Rey... me falou.
— Isso, ela era a minha melhor amiga e eu passei um inferno enorme até compreender que as coisas acontecem do jeito que têm que ser. Mas você não tem que compreender nada agora, pode só... sentir tudo o que precisa, sem pressa nenhuma. Escuta, preciso de um contato. Quem está cuidando de toda a logística?
— É... a assistente da mãe da Sora, envio para você.
— Envia, e coma. Vocês duas.
Comeram e, quando Zoe terminou, se levantou da mesa, pronta para fazer uma ligação.
— Qual a nacionalidade dela? Dessa Alison?
— Ela é japonesa também, mas fala inglês.
— Ok — Ela se afastou para ligar.
Silêncio. Aham, de novo, porém, Nina quebrou.
— Reira?
— O quê?
— Ela é incrível.
Sorriso de Reira, mesmo naquele rosto triste.
— Ela... ela realmente é. A Zoe é a melhor coisa que já me aconteceu, Nina. Você... você já tem alguma foto do bebê?
Ela negou.
— Como ela é?
— Eu... ainda não consegui vê-la.
— Como assim não conseguiu...?
O assunto parou aí. E então, Zoe retornou, dizendo que precisavam ir, a cerimônia iria começar em breve. Saíram da cafeteria, as três, e Nina começou a chorar tudo de novo.
— Reira...
— Eu vou entrar com você, vamos.
Deixaram o carro no estacionamento da cafeteria mesmo e foram caminhando. E foi possível ver a olho nu: Reira era outra. O rosto endureceu, a postura se refez, ela pegou Zoe pela mão e era Reira Kato, a CEO empoderada, a quem nada abalava. A não ser as lentes de contato. Pararam na entrada do salão de cerimônias para ela arrumar. Daí, ela colocou seus óculos escuros e entraram as três. Havia muitas pessoas, claramente a família de Sora, alguns amigos também. Reira apresentou Zoe para algumas pessoas e então, chegou até seus tios. Se cumprimentaram à maneira oriental, trocaram condolências e, quando ela se aproximou de Sora, Zoe a viu lutando outra vez.
O choro gritava no corpo, mas nada se mostrava naquele rosto. E doeu até em Zoe; Sora era realmente muito nova, muito bonita, tinha acabado de ter um bebê. Aquele tipo de tragédia não tinha nada a ver com ela, de fato, não era o tipo de coisa que se espera. E então, aparentemente, existiam posições a serem tomadas em um funeral japonês. O cônjuge tinha uma posição, a tal da celebração estava para começar e a tensão foi aumentando, dava para sentir. Era uma tensão discutida em japonês. Nina foi dando passos para trás, Zoe também, para trás de Reira que, de repente, se agigantou para cima dos Kato de Shibuya.
E é terrível acompanhar uma discussão onde não se entende nem uma palavra. Tudo o que Zoe sabia era que Reira estava ficando mais e mais irritada, o tom subindo, o olhar dela também. A girl boss estava totalmente nela agora e não havia uma rachadura de fraqueza sequer. E no meio da discussão:
— Guapa, você pode se sentar — Ela disse para Zoe, em espanhol, para que eles não entendessem.
— Você acha que...?
— Vai demorar, você pode se sentar.
— Eu também? — Nina, em espanhol.
— Você também. Fica com a Zoe.
Foram se sentar e a discussão em japonês apenas continuou.
— O que você acha que...?
— Eles não me querem aqui, Zoe. Eles nunca concordaram com o nosso relacionamento, menos ainda com o casamento.
— Bem, eles podem discordar o quanto quiserem, seu lugar é aqui. Era o que a Sora gostaria, não?
Nina sabia que sim. E só queria que aquilo terminasse de vez. O sacerdote se aproximou, como que tentando acalmar a situação. Eram cinco contra uma Reira Kato, e Zoe tinha certeza de que ela estava ganhando.
— Ela sabe lidar com eles — Nina disse, já um tanto mais calma — A Reira não tem medo de nada. Uma vez, ela me disse que... — Respirou fundo — Nada existe com maior poder de mudança do que a dor. Fique mais rude com um causador de dor e ouça o silêncio surgindo. Ela é boa nisso.
— Ela é dura quando necessário.
— Reira Kato é inquebrável. O Cruz vive dizendo isso e ele tem toda razão. Eu queria ter um pouco disso também.
E do nada, aparentemente, a discussão cessou. Reira se aproximou delas novamente.
— Fileira da frente, Nina.
Nina voltou para a sua posição, para a fileira dos familiares ao lado de Reira, que não soltava a mão de sua noiva nem por um instante. Ficaram mais perto de Sora. Havia uma bela foto dela, provavelmente uma foto de férias em algum lugar. Ela estava em roupas de frio, extremamente elegante, os cabelos longos e negros colocados para trás da orelha, com um olhar intenso de olhos escuros como os de Reira. O sacerdote pediu para que ficassem de pé e, enquanto ele iniciava os ritos, um belo casal passou pela porta de entrada.
Um rapaz alto, bonito, com os cabelos compridos presos em um coque baixo, muito bem penteado. Era o irmão de Sora, com toda certeza, eles eram extremamente parecidos. Todo de preto: calça, camisa de gola alta, terno e estava de mãos dadas com uma moça, simplesmente deslumbrante.
Muito bonita, mesmo.
Cabelos em um loiro acobreado, sedosos, vestidinho branco de alças finas, saltos, e um terninho italiano preto por cima, oversize, altamente estiloso. Tinha tatuagens, visíveis na nesga descoberta de pele entre o colo e os ombros, e havia nela aquela partícula que também existia em Reira, onde, apenas ao olhar, sabia que se tratava de uma celebridade.
Ou de alguém que deveria ser uma.
E assim que ela entrou, imediatamente, uma ponte foi criada.
Os olhos de Nina caíram sobre ela e não puderam mais sair. Foi outra luta que deu para ver; ela desviava o olhar, mas subitamente, olhava de novo, como se fosse inevitável, e talvez fosse mesmo. Os olhos de Bryce a encontraram também, um olhar muito alongado, silencioso em meio à celebração em japonês que já estava em andamento. Eles foram para o lado oposto ao qual elas estavam, era um casal bonito, jovem, que não estavam mais juntos, mas estavam juntos porque ele precisava dela e dava para saber só de olhar que aquela moça não era um tipo que abandona. Engraçado, dava mesmo para sentir isso só de olhar para ela; não era modo de falar, Zoe podia sentir de verdade este tipo de energia vindo dela. Queria conhecê-la. Ela estava morando na casa de sua noiva, no final das contas.
E parecia mesmo um tipo capaz de causar desavenças. Que garota bonita. Tão bonita quanto Zoe, que não costumava ter muita concorrência em questões de beleza, mas ali estava, a tal de Bryce. E as duas James. Rey podia ter muitos defeitos, fazer filhas feias não era um. E sim, Zoe teve tempo de pensar em muita coisa aleatória porque o ritual foi longo e a maior parte em japonês, dividido em alguns momentos. O sacerdote fez preces, a família fez preces (incluindo Nina, em japonês), então os amigos mais próximos e os demais visitantes. Foi algo minimalista, mas muito bonito. E chegou o último momento, onde deviam se despedir. Todos foram, Nina ficou por último, e ela não parecia ter forças para isso, não parecia ter coragem. Zoe falou com ela, em seu idioma nativo, que sempre traria algum conforto, e pôde notar uma ansiosa Bryce do outro lado. Ela não tinha se aproximado, mas claramente queria. Claramente queria e sabia o que fazer para colocar Nina de pé. Existia uma ligação ali, mas era obscuro de se entender.
— Vamos, eu vou com você — Reira se colocou de pé.
Nina a olhou e foi com ela. Caminharam lado a lado, mas quando chegaram perto de Sora...
As duas desabaram ao mesmo tempo. Reira quebrou na postura que tinha chegado, Nina estava quebrada há muito mais tempo, e quando Zoe pensou em fazer algo, não foi necessário.
Rey James entrou pela porta e, sem tomar conhecimento dos rituais japoneses, abraçou suas duas filhas.
E elas se agarraram nele, Reira escondendo o rosto no peito do pai, Nina agarrada no braço dele, enquanto tocava Sora, pela última vez. Ele havia claramente chegado direto do aeroporto, estava de calça jeans, camiseta preta e óculos escuros. Falou com as duas, mantendo-as junto a ele, um escudo de proteção de 1,87 de altura que não permitia ser questionado. Rey também sabia como lidar com os Kato.
— Eu sinto muito, Nina — Ele sussurrou, olhando para Sora uma última vez, ainda com suas duas meninas protetoramente guardadas em seus braços — Esse tipo de coisa não deveria acontecer.
Não deveria. De forma alguma deveria.
Nina se despediu de Sora, deixou um beijo no rosto dela, falou baixinho, algo que ninguém pôde ouvir e, Reira fez o mesmo. Beijo no rosto, promessa ao ouvido, aquilo não deveria MESMO ter acontecido.
E assim, depois de um último beijo de Nina Alvarez, Sora Kato foi encaminhada para a cremação.
Como aquilo tinha sido triste.
Zoe não conhecia Sora, não conhecia Nina, mas ver aquela jovem mulher assistir a própria esposa sendo colocada numa câmara de cremação... Ela terminou de desabar. O que ainda restava dela simplesmente desabou. Rey estava com ela, a apoiando, dando os seus braços, tanto para Nina como para Reira, que se abalou com a cena também. Gael foi apoiar seus pais, buscando o apoio deles e, no meio daquela cena toda, no fundo da sala, estava Bryce. Sozinha. Lagrimando. Discretamente, lagrimando. Aparentemente, era inapropriado chorar na frente daquela família. Mas ela chorou sozinha mesmo assim. O que se passava por ela? Qual era a relação com Sora? Zoe compreendeu. Aquele choro não era necessariamente apenas por Sora. Na verdade, era majoritariamente por Nina.
Era claro como as chamas que se acenderam que elas desejavam estar perto uma da outra.
E mais claro ainda, o motivo de aquela família as querer separadas.
Nem pareceu, mas levou o dia inteiro. E depois que a cerimônia terminou, havia um brunch aguardando na sala ao lado. Nina teve que resolver coisas técnicas, James foi com ela, Gael também, e Reira foi procurada para um segundo round com os pais de Sora. Mais uma vez, os olhos de Zoe pegaram Bryce sozinha no fundo do salão.
Ela estava sentada, mexendo um café, sem nenhuma pretensão de tomá-lo, provavelmente. A mente longe, um cansaço no rosto e, intrigantemente bonita. Era bonita mesmo, e olhando mais de perto agora, Zoe pôde notar um piercing labial, uma argola discreta no lábio inferior. Ela podia estar num perfil de Spotify tranquilamente, a aura de celebridade apenas existia, naturalmente. E Zoe reconheceu outro traço que lhe era bem familiar: a aura de celebridade falida.
Já havia sido um tipo assim também.
— Oi, tudo bem? Meu nome é Zoe Garbiñe — Esticou a mão para ela, que pegou imediatamente, como se fosse tirada dos próprios pensamentos subitamente.
— Ah, oi! Eu sou Bryce Novais. Você... você é a noiva da Reira.
— Isso. Não tivemos tempo para apresentações formais, aparentemente... — Olhou para trás — Eles não param até drenar todo o sangue da vítima. Quero dizer, do familiar — Disse, fazendo Bryce sorrir um pouco.
— Do familiar indesejado.
— Eu imagino que a Reira não seja muito querida também.
— Não é, mas eles a respeitam. Não passam facilmente por ela.
Um pequeno silêncio.
— Bryce, você está morando no apartamento da minha noiva.
— Ah, sim! Mas é que, bem, eu estou, mas não é exatamente...
Zoe se recostou ao lado dela.
— Reira já me disse que você é da Nina.
— Que eu...?
— Ela me explicou mais ou menos a situação.
Bryce respirou fundo.
— Se ela conseguiu explicar, eu também gostaria de ouvir. Mas Zoe, a Reira só me ajudou porque...
— Você estava vulnerável. E a Nina é uma idiota.
— Ela... às vezes ela é, mas ela é boa, Zoe. Ela... é muito boa — E tinha voltado para o salão, os olhos de Bryce em cima dela imediatamente, o fenômeno a atingia da mesma forma — Só precisa parar de achar que tudo é sempre culpa dela.
Zoe a olhou.
— Bryce?
— O quê?
— Os olhos falam.
Sempre falam.
Finalmente, tudo acabou. E James decidiu levar as filhas para jantar, cercado de seguranças, era melhor assim. Reira estava cansada, Nina era apenas um fantasma. Ela não falou quase o jantar inteiro, e o jeito que olhou para Bryce entrando em outro carro foi de partir qualquer coração. Reira falou um pouco mais, mas ainda foi quase nada. No final das contas, o jantar foi mais Rey perguntando coisas técnicas para Zoe sobre a empresa. E antes do jantar acabar, Reira e Nina foram ao banheiro ao mesmo tempo, deixando apenas os dois à mesa.
— Você... ficou bem com...? — Rey ensaiou perguntar.
— Com a Reira ter uma irmã e não me contar? Não exatamente. Mas a culpa não é dela, é sua.
— Zoe, eu demorei para entender as coisas, para assumir o meu papel de pai com os meus filhos, mas mudei.
— Demorou onze anos para entender o básico sobre ser pai. E segue tentando ajustar até hoje. Bem, você é melhor que o meu pai, ao menos, que não amadureceu em momento algum.
Ele não retrucou. Elas voltaram para a mesa e o jantar foi encerrado, então se separaram. Rey foi para o seu hotel, não dormia há muitas horas, e Reira e Zoe foram deixar Nina em casa.
E isso foi complexo. Muito mais complexo do que Zoe podia imaginar. Nina se despediu, desceu do carro e ficou parada na frente do portão, aparentemente checando algo no celular. Era uma casa muito bonita, em um condomínio de alto padrão, com muito verde para todos os lados. Tinha um pequeno portão e a casa de pedra, vidro e madeira se agigantava para o alto. E ela não entrou. Ficou parada, um tempo esquisito. Reira não estava vendo, estava distraída, falando com o motorista.
— Quanto tempo está dando até o nosso hotel?
— Temos trânsito, senhorita, acho que vai levar uma hora mais ou menos.
— Reira, Reira! — Foi Zoe porque Nina tinha se segurado estranhamente no portão e desmaiado.
Reira desceu rapidamente, correndo até ela. Nina tinha apagado, mas estava de volta, pulsando de tanto chorar.
— Nina, Nina, olha aqui pra mim, você está bem?
Ela olhou para Reira e buscou o corpo dela. Apenas se recostou em Reira, sem tocá-la com as mãos, apenas se apoiou, e Reira não se moveu, mas não a afastou.
— Reira, eu não consigo entrar aqui, acho que...
— Você não entrou ainda?
— Não, a Bryce... pegou roupas pra mim, eu estava... Acho que não consigo entrar — Mais lágrimas.
Reira a colocou de pé.
— Vamos pra casa.
— Qual casa, Reira?
— East Melbourne. Tem uma casa lá. A gente... — Olhou para Zoe, ela tinha descido — A gente pode ficar lá também?
Zoe pegou Reira pela mão e Nina pelo braço.
— Onde está o seu carro, Nina?
— O meu...? — Ela pareceu confusa — E-eu esqueci.
— Eu notei que esqueceu. Por que não voltamos, pegamos o seu carro e vamos dirigindo? Não gosto dessa ideia de ter motoristas o tempo todo.
Ela respirou fundo. Era uma técnica, quando o pânico tomava Juli ou Zoe, Barbie sempre dava a elas algo para fazer e isso bloqueava o pânico.
— A gente pode fazer isso.
— A gente pode. Avisa para a Bryce que estamos indo?
Um pequeno lampejo acendeu naqueles olhos.
Notas da Autora: Tessa Reis
Vamos lá, agora a gente chegou num ponto que temos mais respostas do que perguntas, não é? 😌
Tivemos neste capítulo o encontro de Reira e Nina, e acho que este encontro em si, já fez uma fotografia do quão complexa e conturbada é essa relação de irmãs. Tanto que a Zoe está conseguindo finalmente chegar no fundo desse poço e entender o motivo de Reira nunca ter falado sobre a irmã antes.
Tivemos também Bryce de volta à cena neste capítulo, para ilustrar com mais clareza ainda, a teia complexa onde ela se enfiou, envolvendo os Kato e, Nina.
Como vocês acham que estão os sentimentos da Bryce em relação à Nina? E o julgamento de vocês com a Nina, está pendendo para qual lado? Para o lado dela ou contra ela? Ahhh, talvez a gente ainda tenha um bom número de perguntas. hahaha.
Nos vemos no próximo!
Voltamos 01/06/2024! 😌
😢
Gente, tô igual cachorro que caiu da mudança... mas sempre com fé que a Tessa vai arrasar novamente!
caramba! tenso demais! Ainda nem sei o que pensar sobre esse "imbróglio"! A tristeza e angustia de todos pareceu palpável...'aquilo não deveria MESMO ter acontecido'... e pensar que teremos muitos momentos de desfechos até o sol brilhar. kkkkkkk tô rindo, mas é de nervoso.😨
A familia da Sora fez questao de tirar a Nina do velorio da sua esposa, mas ainda bem que a Reira chegou e colocou todos no lugar e Nina enfim pode participar do velorio da esposa...
A historia que Reira contou pra Zoe sobre a irma como elas se conheceram foi de corta o coraçao.
Rey James com as filhas ate hj ele ta tentando ser pai.
Essa historia vai fazer a gente queimar nossos neurônios e ter muito que entender ainda, mas Tessa com certeza vai nos explicar tudinho a cada capitulo.
Essa família é muito unida... só que não! Meu Deus do céu, que capítulo tenso foi esse, Tessa? Sério, a tensão era tão intensa que acho que daria pra cortar com uma faca... e esse velório me ajudou a entender o último pedido da Sora, pois deu pra ver que a família dela não só detestava a Nina como fazia questão de deixar isso bem claro!
E a história da Reira e da Nina foi de partir o coração... passado difícil, presente complicado. E o jantar com Rey James tendo Torta de Climão como sobremesa, que coisa tensa. Honestamente, ainda tá difícil entender algumas coisas, mas sinto que ainda teremos muitas informações nos próximos capítulos... e me pergunto como todo esse caos…